domingo, dezembro 09, 2012

É no deserto que se escuta a Vida… - 2º Dom. Advento



A voz do Batista no deserto sempre despertou consciências adormecidas, sempre desassossegou corações que não se queriam acomodar, e criou sempre sintonia entre o que é verdadeiramente humano e, por isso, profundamente divino. 

 [João Baptista, Caravaggio - Galleria nazionale d'arte antica, Roma +/- 1604  ]



Para entrar no deserto é preciso ‘desnudar-se’, e esse parece ser o primeiro desafio que Caravaggio coloca a quem contempla esta pintura de João Batista. Desnudar-se aqui significa colocar de lado as muitas máscaras com que às vezes vivemos e atrás das quais nos escondemos.

João é esta voz quotidiana que não se cala e que apela a uma mudança profunda, radical (= a partir da raiz) da vida, do coração, da inteligência. Os ‘modelos’ nas obras de Caravaggio não eram uma espécie de ‘eleitos fora da sociedade e da vida’ que acontecia na diversidade de problemáticas e ofícios. Caravaggio sempre escolheu homens e mulheres que viviam o quotidiano. Homens e mulheres que traziam inscrita na sua história esta ‘dramaticidade feliz’ de quem vive por dentro, e no tempo, no concreto, aquilo que são os desafios, a construção, a luta, a exigência…talvez por isso o segundo grande desafio que nos faz este João é o de nos perguntarmos com que empenho, com que ‘garra’ estamos a acolher, a viver e a partilhar o nosso quotidiano. A fé não faz de nós ‘extraterrestres’, muito pelo contrário, coloca-nos no coração da história e do mundo para aí, com a força da esperança e a ‘criatividade do Amor’, sermos ‘motor de transformação (= conversão), fomentadores de sonho e de futuro, companheiros de viagem.

Contemplando mais atentamente este João, vemo-lo também sem os seus atributos mais comuns: vestido das peles de camelo e a cruz que habitualmente traz na mão. Caravaggio envolve este homem desnudado num manto vermelho, em contraste profundo com a escuridão (= João não é a LUZ mas encaminha para ela), coloca-lhe nas mãos uma cana (= o ‘poder’ deste homem é o mesmo que veremos mais tarde no “Rei condenado e Crucificado”: o AMOR), por detrás o tronco de um cipreste (= sinal da sua condição mortal mas sempre apontando para o Alto, convidando a deixar-se abraçar e envolver pela ETERNIDADE). Para nós, se quisermos interpretar isto como um terceiro desafio, estes ‘sinais’ são indicações preciosas para o nosso caminho de Advento: ‘Revestir-se de luz’, para vencer a escuridão que pode haver em nós; Colocar de lado todas as tentações de poder, que apenas nos blindam e não nos deixam ser próximos; Viver o tempo e a história como um capítulo concreto da vida, que aqui começa, mas que vai para além do horizonte, atravessa as coordenadas do tempo e se faz uma vida (e)terna.

Um olhar ainda mais profundo e atento não deixa de ver o contraste entre a beleza de todo o enquadramento (manto, corpo, rosto) e as mãos mais escurecidas e rudes. As mãos de João tocam quotidianamente as ‘areias do deserto’, confrontam-se com a banalidade, batizam os ‘feridos da vida’ e abraçam os peregrinos que, reconhecendo a sua fragilidade, sabem que essa não é o fim pois a Misericórdia d’Aquele que está para vir é eterna. Um último desafio que este João nos traz é exatamente o de nos perguntarmos, olhando as nossas mãos, acerca do nosso acolhimento, dos nossos gestos. Acolhemos, abraçamos, tocamos as existências feridas e magoadas com que nos cruzamos no quotidiano ou, pelo contrário, as nossas mãos continuam polidas pela indiferença, sempre limpas porque sempre nos bolsos e incapazes de se abrirem para dar, para acolher…para Amar. É de quotidiano que se faz o caminho. Não deixemos pois de caminhar ao longo da semana, iluminados pela voz e pela Palavra que nos leva ao deserto e que nos convida a re-entrar na ‘cidade’(= os muitos lugares que habitas e em que te cruzas com os outros), com um coração novo, com olhos novos…para fazer acontecer de novo Aquele que é sempre ‘novidade’ para nós.

domingo, dezembro 02, 2012

'Vigiar' com o coração... - 1º Dom. Advento 2012



Começa por serenar o coração.
Há quanto tempo não há silêncio dentro de ti?

Uma vida sem silêncio dificilmente consegue falar, pois é no silêncio que são tecidas as palavras, quase ao modo de filigrana, unindo cada fio de relação, de encontro, numa pequena “teia” que se configura como uma peça de ‘arte’, a arte de ser…por inteiro…por dentro…para todos…com todos.
Atravessando o tempo e a história, como protagonistas e peregrinos, sabemos que o mistério da vida se desvela, em parte, quando os nossos olhos não se rendem ao factual, quando o nosso coração não se prende ao que é banal, quando a nossa inteligência, santuário onde Deus fala ‘o novo’, não se deixa agrilhoar pela amargura do ‘não há nada a fazer’, ou pior ainda, do ‘é impossível’.

A vida, dom e mistério, é um convite a ler atentamente, em profundidade, o tempo e a história que fomos, somos e que virá. É um exercício constante de ‘vigilância’, não ao modo das sentinelas que observam o horizonte para ver se vem o inimigo, mas ao jeito dos profetas, dos santos, que sempre foram capazes de colher no tempo, no fio da história, a irrupção do que é novo. Sim, é de novidade que se fala quando se diz “vigiai”, pois vigiar de modo cristão não é mais do que conjugar no olhar a sintonia da inteligência e do coração para ver o dom a acontecer, para ver o novo a (re)surgir.

E com que olhos andas a ‘contemplar’ a realidade?

Em tempo de Advento* há uma “vigilância” que é preciso (re)acender, a ‘vigilância do coração’, para não nos repetirmos no peso de rotinas vazias que vão desgastando o que somos, corroendo o que vivemos e anulando o horizonte que nos chama. Essa vigilância do coração’ podemos aprendê-la com S. José.

[San Giuseppe legge a lume di candela, Gerrit van Honthorst, +/- 1610 -1615, Chiesa di San Francesco a Ripa, Roma]

De José, na Bíblia, conhecemos essencialmente o silêncio e a ternura.

Silêncio de um coração que anda em busca e que é surpreendido pelo chamamento de Deus a ser pai e esposo, protetor e guardião, homem que abre caminho e que acolhe a novidade. Silêncio de quem se deixa encontrar e habitar pelo Mistério…

Ternura de um homem-esposo-pai que mesmo não percebendo tudo claramente não se cansa de cuidar, amparar. Ternura de quem responde ao amor quotidiano com a fidelidade de um ‘sim’ que não desiste perante as dificuldades…

José é silêncio e ternura porque soube vigiar.
Enquanto procurava não teve medo de se deixar encontrar, enquanto caminhava não teve medo de se deixar acompanhar, enquanto sonhava não teve medo de deixar que o mistério lhe dilatasse o coração e a inteligência para que, abraçando o Menino, abraçasse o mundo ao qual este Menino era enviado como Salvador.
No silêncio e na ternura de um quotidiano feito (a) caminho José convida-nos a alargar os horizontes, às vezes pequenos, da nossa existência a um nível de profundidade que se chama eternidade e a deixarmo-nos guiar pela luz, discreta e serena, da .

Creio que é assim, nesta ‘lógica’, que Gerrit van Honthorst coloca diante de nós este José, leitor e contemplativo.

(re)lendo(-se) à luz da vela, José convida-nos a entrar pela ‘Porta da Fé’ com a simplicidade de quem traz perguntas dentro mas que não traz pressa para encontrar respostas. É que a vida, quando não é saboreada por inteiro, e por dentro, corre o risco de ser desperdiçada em banalidades.

Por outro lado, este José que (se) lê é também um convite a olhar o quotidiano como o espaço da ‘surpresa’ e do ‘dom’ que desafiam a ir para além do óbvio, a vencer tanta(s) indiferença(s) com a diferença de um coração crente, a caminho, cheio de luz recebida e partilhada…

Finalmente, José, homem da meditação e do silêncio, convida-nos a entrar a ‘porta do Advento’ procurando em Deus, e com Ele, o sentido e o significado mais profundo para o nosso quotidiano, para o nosso amar, olhar, acolher…

Se vigiar-contemplar é próprio de quem não se deixa vencer pela banalidade, então não te canses de contemplar…porque Ele vem…Ele está!

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* “A palavra «Advento» é a tradução da palavra grega parusia, que significa «presença», ou melhor, «chegada», quer dizer, presença começada. (…) Advento significa presença de Deus já começada, mas também apenas começada. Isto implica que o cristão não olha somente o que já foi e o que aconteceu, como também ao que está por vir” (Joseph RATZINGER)