quarta-feira, fevereiro 18, 2015

UM ‘CORAÇÃO DE ALABASTRO’...


“Tu nos criastes para ti, ó Senhor,
e nosso coração anda inquieto
enquanto não repousa em ti…”

(Santo Agostinho, Confissões)


O nosso coração move-se e comove-se. Não obstante todas as vulnerabilidades, há sempre uma sede de bem e de verdade, de beleza e de amor que o dinamiza. Um coração que não se envolve, que não se deixa tocar e ‘ferir’ pela realidade, sobretudo a daqueles que estão nas margens, é um coração em agonia na indiferença e em marcha fúnebre para a ‘solidão relacional’. Um coração que não sabe chorar nem recolher como diamantes as lágrimas do outro, no jardim da vida, é uma realidade entorpecida, cega…é que só sabe chorar, o coração que aprendeu a festejar, a acolher, a agradecer, a escutar…o coração que soube atravessar todas as estações da vida, sem pressa e sem medo. Recorda-nos, a este propósito, o Papa Francisco: “A Deus não lhe é indiferente o mundo, mas ama-o até ao ponto de entregar o seu Filho pela salvação de todo o homem” (Mensagem Quaresma 2015).

Sim, o Coração de Deus não é indiferente e convoca-nos para fazermos a diferença…com coração! Porque tudo o que não nasce do afecto, não toca a realidade nem converte a vida. É o afecto que move o mundo, é a ternura que o abraça, é o amor que o transforma. Há 3 dinamismos do coração que nos podem ajudar muito esta quaresma:

Caminhar com UM CORAÇÃO PEREGRINO

Sendo convite a fazer caminho, a quaresma é um tempo para nos redescobrirmos como discípulos. É o tempo para bebermos ‘nas fontes da salvação’ a alegria de cada passo dado. É tempo para caminharmos, sem medo, de pés descalços, sem qualquer ‘blindagem’, sem ‘jogos de defesa’ e muito menos ‘estratégias de ataque’…um coração peregrino sabe deter-se apenas no fundamental e fazer acampamento com a sua tenda somente nos lugares onde o discernimento convoca para ir mais fundo, para vencer o banal. É aí também, no lugar da história e da ‘memória fundamental’, que o coração peregrino aprende a ser um ‘místico do quotidiano’ deixando-se surpreender pelo milagre da vida e dos passos dados com aquela graça de quem sabe ver ‘o eterno no instante’…

Tocar o outro com UM CORAÇÃO CONVERTIDO

Para atravessar o deserto é preciso partilhar o pão e o caminho. Por isso a quaresma é provocação constante a tecer a ‘filigrana da vida’ deixando que o outro tome conta de mim, da minha história. Nenhum de nós é uma obra já acabada. Somos um diamante que continua a ser ‘esculpido’, delicadamente, não só por Deus e seu amor infinito, mas também pela graça infinita dos outros que têm muito para nos contar, partilhar, confiar. Por entre escuta, diálogo e cumplicidade, a vida toma conta de nós com o mesmo fulgor com que a eternidade atravessou a morte para sempre. E, se toda a conversão nasce da escuta, é importante não esquecer que a conversão também é gerada no encontro. É por isso que a quaresma é um ‘despertador permanente para a nossa caridade’. Sim, caridade! Caridade sem fingimento, como diria S. Paulo. Aquele amor (e)terno que sabe ver o outro, ver o bem no outro e deixar-se contemplar pelo outro. Sem máscaras e sem rótulos. Porque nenhum de nós é uma etiqueta, nem o nosso agir pode simplesmente corresponder ao que os outros esperam de nós. Não é à toa que o Papa Francisco nos diz: “o Cristão é aquele que permite a Deus revesti-lo da sua bondade e misericórdia, revesti-lo de Cristo para se tornar, como Ele, servo de Deus e dos homens (...) A quaresma é um tempo propício para nos deixarmos servir por Cristo e, deste modo, tornarmo-nos como Ele". É que Cristo anda pelos nossos caminhos, peregrino, ao nosso lado. Sendo irmão e companheiro de viagem deixa-se abraçar ‘no outro’ quando o nosso coração sai da ‘zona de conforto’, quando somos profetas capazes de derrubar os respeitos humanos que nos querem ‘comportadinhos’ mas que dificilmente nos deixarão alguma vez ‘ser santos’. Sim a quaresma é tempo e caminho para tocar a fragilidade do outro, e a nossa, sem termos medo de sujar as mãos! E se Deus é o primeiro a ser Pai…porque é que nós somos tantas vezes juízes?...

Testemunhar com UM CORAÇÃO PERFUMADO

Porque é oferta de recomeço e porta escancarada para a Páscoa, o tempo da quaresma é projecto a viver cada passo com um ‘coração de alabastro’ (Mateus 26, 7). Um coração perfumado que aprendeu a derramar Páscoa em cada pegada da vida, em cada encontro, em cada história. Um coração perfumado é sempre ‘casa do Ressuscitado’, escola de ternura e misericórdia. Nunca é em demasia lembrar que: “ter um coração misericordioso não significa ter um coração débil. Quem quer ser misericordioso precisa de um coração forte, firme, fechado ao tentador mas aberto a Deus; um coração que se deixe impregnar pelo Espírito e levar pelos caminhos do amor que conduzem aos irmãos e irmãs; no fundo, um coração pobre, isto é, um coração que conhece as suas limitações e se gasta pelo outro” (Papa Francisco).

…É para tudo isto que nos convoca a Páscoa! Ela vem aí.
Onde e como está o teu coração?





segunda-feira, fevereiro 09, 2015

«…YOU RAISE ME UP!


Por detrás de todo o lamento há um murmúrio secreto de confiança, há um coração que na noite se abre ao dia e sussurra “eu confio em ti!”. É desta ‘secreta confiança’ que são feitos muitos dos nossos gestos, das nossas palavras, gestos, silêncios e decisões. É assim também quando temos que atravessar a porta do sofrimento humano…Precisamos de nos descalçar, de formar na ‘arte da escuta’ o nosso coração, precisamos de ‘desposar a esperança’ com um coração habitado por aquela primavera de quem sabe que o futuro é desconhecido, mas não é incerto!

Esta semana somos também nós atravessados por uma esperança que não (des)ilude, uma esperança activa que nos faz perceber que deixamos marca em tudo e em todos os que tocamos (cf. Mc 1, 29-39). E, assim como fica ‘tatuada’ na realidade a nossa impressão digital, também em nós deveria ficar tatuada a ternura de quem sabe que um toque vale mais de mil palavras e um silêncio (contemplativo e misericordioso) vale por mais de mil imagens, dado que requer aquele ‘olhos nos olhos’ feito de uma cumplicidade que nasce do amor e que é habitada pela fidelidade que faz sempre dos pontos finais um ponto de partida.

Não nos basta, para abraçar a vida em plenitude e para nos recordar que somos amados, o ‘depois dou-te um toque’ com que tantas vezes nos comunicamos. Nem nos serve um abraço fugaz ou a ‘pancadinha nas costas’ como se fossemos os eternos ‘amigalhaços da superficialidade’. Tocar no outro, e tocar o outro, é um dom que não se improvisa. É uma responsabilidade. É um compromisso, e uma aliança, com aquela ‘ternura Pascal’ de quem aprendeu a beijar a história sagrada daqueles com quem se cruza…e só o pode fazer quem deixou que Deus, em Jesus, pudesse abraçar e beijar a sua fragilidade.

Sim, o nosso Deus é um ‘enamorado pela nossa pequenez’! Não porque nos queira pequenos, mirrados e sufocados num ‘vale de lágrimas’, mas porque desde sempre nos sonhou para sermos um (in)finito abraçado pela Páscoa…

A verdade é que fomos mais habituados a olhar para Ele como ‘um que nos julga’ em vez de O acolhermos como ‘O único que nos cura’. Mas Deus, quando nos toca, não nos esmaga; e quando a Sua mão entra na nossa história, não é para nos ‘apontar o dedo’ mas para levantar-nos e dizer-nos: “Vamos recomeçar? Eu acredito em ti!”.


Porque é Amor, Deus só sabe recomeçar. E é assim que Deus nos quer nesta semana: a deixar a acomodação e a suscitar recomeços. Ele quer-nos a ‘dar a mão e a levantar’ aqueles que se deixaram entrevar (= encher de trevas/escuridão), os que perderam no caminho a linha do horizonte, os que andam interiormente cheios de ‘diabos’ (= divisão/confusão),…e tu, em quem vais deixar ‘a tua marca’? E como?...Boa Semana!