terça-feira, maio 31, 2016

UM CORAÇÃO “KINTSUGI”...


A nossa vida quotidiana é cheia de surpresas, eventos, alegrias, dores e sofrimentos. Nela há tantas histórias, lugares e pessoas que nos marcam profundamente; há abraços e memórias, palavras, olhares e encontros que tornaram (e)terno um instante. Na nossa história pessoal há também pessoas que nos feriram...há mágoas que teimamos não deixar cicatrizar, há silêncios amargos, ‘pesos interiores’, há recordações que são mais barulhentas que um campanário em dia de finados...

Por entre a memória e afeto, cheios de passado ou escancarados ao futuro, há também dentro de nós ‘o dom das cicatrizes’. De quantas cicatrizes é feito um coração? É uma pergunta que talvez nos possa acompanhar estes dias! Todos somos afeto...e sem afeto nada somos. É importante que o nosso coração saiba olhar para além dos sentimentos mas também que aprenda a discernir sem a frieza de uma racionalidade estéril que sabe reagir, analisar, planejar mas que dificilmente tocará algum dia a realidade.

Sabemos pela Palavra da Vida, o Evangelho, que não adianta projetar se não estamos dispostos a sujar as mãos! Não adianta saber quem é Deus se não nos deixamos encontrar e converter por Ele. De que adianta, aliás, saber (e debitar!) todo o Catecismo se na verdade não somos habitados pelo Evangelho? A experiência de fé não é uma decisão ‘ética’ ou ‘estética’, é encontro! E todo o encontro pressupõe uma história sagrada, um caminho, uma vida...

É muito interessante lembrar aqui a arte japonesa do kintsugi (ou kintsukuroi), arte que consiste em reparar com ouro objetos de cerâmica quebrados. Ela nos re-ensina, a nós que somos nutridos pelo Evangelho, como para Jesus cada encontro é uma vida, e toda a vida é um encontro. Sem filtros ou barreiras, sem impossíveis ou distâncias. O Mestre de todos os encontros é também o único que sabe que embora possamos cometer alguns erros, jamais seremos um erro!

É este ‘excesso do dom’ que interpela e seduz, é este “Amor-de-todo-o-amor” que faz do Centurião um peregrino (Lc 7, 1-10). É este Amor que converte e salva que nos coloca ‘em saída’ e nos faz ver que, para além dos nossos preconceitos, para além dos nossos julgamentos, para além dos nossos filtros hipócritas, há muito ‘dom’ a acontecer. Jesus, ‘o Profeta fora da lei’, faz-nos ver como ‘fora do templo também há salvação’! Ei-Lo provocador a lembrar-nos: “Digo-vos que nem mesmo em Israel encontrei tão grande fé”. Não se trata simplesmente de um elogio, mas de um olhar contemplativo e de um encontro que viu naquele coração os fios de ouro (kintsugi) da ação divina, o dom divino a fazer do Centurião-peregrino um modelo para todos os que buscam contemplar as cicatrizes (o ouro!) onde outros só veem passado (ódio/amargura). O Centurião de Cafarnaum é ‘parábola’ do caminho que ainda nos falta fazer! Nesse caminho o primeiro passo, que nos desinstala e transforma, dá-se quando a nossa vida é capaz de dizer: “Senhor, não sou digno que entres em minha casa, mas diz uma palavra...e serei curado!”.





terça-feira, maio 10, 2016

CORAÇÕES AO ALTO!


De quanto céu é feita a tua vida? É uma pergunta essencial para quem ousa ir além da espuma dos dias! Não se trata de ‘ser bonzinho’ ou de ‘fazer de conta que o mal não existe’, muito menos se trata de ser ‘ingénuo’. Encher a vida de céu significa colocar como ponto de partida de cada passo, e em cada gesto ou palavra, o discernimento. Trata-se essencialmente de um processo de ‘degustação interior’ que permite ver o que nos humaniza e aquilo que nos desfigura.

Vivemos num tempo onde leveza é confundida com superficialidade, reflexão e ponderação são olhadas como ‘uma perda de tempo’, e como já ‘não temos tempo’ segue-se adiante, de experiência em experiência, aumentando cada vez mais o vazio existencial. Vai-se enraizando, sobretudo nas novas gerações, um certo ‘analfabetismo emocional’ que privilegia uma vida cheia de emoções e comoções mas que é incapaz de fazer olhar ‘para longe’ e ‘para o alto’. A grande crise que vivemos não é primeiramente moral, vivemos isso sim uma verdadeira ‘crise humanitária’ e espiritual. Precisamos reaprender a ser humanos, precisamos reencontrar-nos com as grandes questões da vida e do mundo, não basta saber para onde temos de ir é preciso educar a vontade...e querer ir! Esta é talvez a maior pobreza do nosso tempo: não sabermos quem somos, esquecermo-nos de onde viemos e não ousarmos ir onde Deus nos sonhou e nos espera.

O Evangelho, boa notícia do coração de Deus para o mundo, vem em nosso auxílio e desperta-nos da ‘espuma dos dias’ (Lc 24, 46-53).  O Ressuscitado encontra-nos, como aos discípulos, em Betânia ( = Casa do Pobre) e pede que a nossa pobreza, sem deixar de ter os pés bem firmes na terra, se habitue a ‘olhar para o alto’. Não se trata de fuga, mas de um sentido: aceitar que cada gesto da nossa inteligência e do nosso coração esteja ‘cheio de céu’. É que, quando o céu nos habita, a indiferença dá lugar ao diálogo, o ódio é vencido pela ternura, a distância encurta-se e faz-se encontro, o egoísmo é vencido e tudo se torna motivo para servir.

Na escola do Evangelho só avança quem aceita ser moldado pelo ‘Amor do Pai e do Filho’, o Espírito Santo. Aqui não há lugar para auto-suficiência! Neste caminho o ‘fazer juntos’ é mais importante que o ‘fazer tudo certo’. É por isso que esta ‘sedução pelo céu’ só é possível, e acontece, num coração-templo!

Com ritmos e experiências diferentes é fundamental redescobrir que somos ‘peregrinos com um coração-templo’. A caminho do Pentecostes, pedimos ao Único Amor capaz de ‘renovar a face da terra’ que venha em nosso auxílio, cure as nossas feridas e nos ajude a “que os nossos olhos, feitos para olhar as estrelas, não morram a olhar para os nossos sapatos” (J. Tolentino Mendonça).




“Quem és tu, doce Luz que me preenche e ilumina a obscuridade do meu coração? Conduzes-me como a mão de uma mãe e se me soltasses, não saberia nem dar mais um passo. És o espaço que envolve todo meu ser e o encerra em si. Se fosse abandonado por ti cairia no abismo do nada, de onde tu o elevas ao ser. Tu, mais próximo de mim que eu mesmo e mais íntimo que minha intimidade, e sem dúvida, permaneces inalcançável e incompreensível, e que faz brotar todo nome: Espírito Santo – Amor eterno!”
(Oração de Edith Stein, uma santa nossa contemporânea e vítima do regime nazi em Auschwitz)