segunda-feira, outubro 24, 2016

HIPERMETROPIA OU MIOPIA?!...


Diz-se habitualmente que a viagem mais longa de todas é aquela feita entre a cabeça e o coração. É verdade que há acontecimentos ou situações que nos pegam de surpresa, que nos tocam de modo muito duro e profundo, fazendo-nos até sentir, nem que seja por alguns instantes, interiormente ‘desconectados’...mas, não é menos verdade que há dias, horas ou instantes em que nos sentimos mergulhados e abraçados pela realidade de forma tão ternamente intensa que tudo ao redor ganha sentido e sabor, é como se após um longo inverno se desse o despontar de uma primavera que acontece de dentro para fora.

É assim que gosto de olhar Jesus quando Ele conta uma parábola; Deus a suscitar primavera, de dentro para fora! Despertando em nós a vida que não pode morrer, o coração que não pode sucumbir, a sabedoria que não se pode calar... A subida ao templo daqueles dois peregrinos (Lc 18, 9-14) é metáfora das nossas ‘itinerâncias’, dos caminhos (per)corridos, dos passos mal andados, dos passos dúbios ou firmes. É metáfora da nossa busca interior e da nossa luta espiritual, sim dentro de nós lutam constantemente o ‘hipócrita fariseu’ e o ‘humilde publicano’.

O fariseu que ‘reza a si mesmo’ sofre de uma perturbadora hipermetropia espiritual, vê mal ao perto! O que ele tem para oferecer no mais intimo do seu ser é somente vaidade. Está tão ocupado em apresentar suas virtudes que envenena o mais intenso e puro dos encontros da vida: estar face a face com Deus! O publicano, por sua vez, sofre de uma ‘bendita miopia’...de tão longe olha para Deus, e consciente dos caminhos percorridos, sabe que a cura para ver melhor e mais profundamente é entregar aquilo que é, sem vaidade nem máscaras, com confiança total.

Entre a arrogância e a ternura há um longo caminho que é necessário percorrer. Nessa peregrinação não há mudanças que sejam automáticas ou por decreto, há apenas trilhos e pontes, há toda uma vida que é preciso aprender a contemplar, degustar e celebrar. Há uma urgência que acompanha cada passo do caminho: entrar no santuário da consciência, o “centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (GS 16).

Por entre as hipermetropias ou miopias da vida, é importante não esquecermos que o dom é sempre total, o amor infinitamente misericordioso e Deus é sempre o primeiro a acreditar no nosso recomeço! É por isso que: “Hoje é tempo de missão e é tempo de coragem! Coragem para reforçar os passos vacilantes, coragem para retomar o gosto de dedicar a própria vida à causa do Evangelho; coragem para readquirir confiança na força que a missão traz consigo mesma. É tempo de coragem, mesmo se a coragem não significa ter a garantia de sucesso. É-nos pedido coragem para lutar, não necessariamente para vencer; é-nos pedido coragem para anunciar (o Evangelho), não necessariamente para converter (os outros); é-nos pedido coragem para ser alternativos ao mundo, sem contudo nos tornarmos polémicos ou agressivos; é-nos pedido coragem para nos abrirmos a todos, sem nunca diminuir o valor absoluto e a unicidade de Cristo, único salvador de todos; é-nos pedido coragem para resistir à incredulidade sem nos transformarmos em arrogantes; é-nos sobretudo pedido a coragem do publicano que, com humildade, rezava o Senhor para que tivesse compaixão dele que é pecador” (Papa Francisco). Boa Semana!



segunda-feira, outubro 10, 2016

CORAÇÃO PEREGRINO...

 

Nos caminhos cotidianos, por entre as suas encruzilhadas, sabemos como é decisivo vivenciar um afeto que nos reconstrua dos medos, frustrações, erros...é sempre sanante um olhar que nos devolva a capacidade de recomeçar e o desejo de sonhar, um olhar que rasgue infinito(s), de dentro para fora, e nos ajude a saborear o eterno nos ‘pequenos nadas’ com que vamos, passo a passo, fazendo da vida ‘a dança serena dos recomeços’. Aliás, o modo como nos olhamos uns aos outros diz muito do que habita o nosso coração, talvez pudéssemos até mudar o dito popular e reescrevê-lo assim: “diz-me como me olhas, e dir-te-ei quem és!”.

O Evangelho, ternura com que o Pai nos visita nos caminhos da vida, convida-nos esta semana a um olhar que vence a solidão, um olhar que devolva vida. Não é difícil sentirmos na carne, o peso e a dor da solidão daqueles pobres leprosos. Excomungados do mundo dos vivos, eram mortos errantes...presença a evitar pelo medo do contágio. Não podiam experimentar o gesto mais nobre e silencioso do afeto, o toque. Mantidos à distância, aqueles leprosos lembram-nos metaforicamente todas as realidades, e pessoas, que etiquetamos e às quais damos morte em vida, também por ‘perigo de contágio’... “em quem temos deixado de ‘tocar’?”, parece sussurrar-nos a Palavra.

Como sempre, o Profeta peregrino de Nazaré recorda-nos que o essencial em cada caminho é dar vida, é ser vida. Não hesita em acolher e escutar o grito ensurdecedor daqueles dez leprosos que lhe pedem compaixão (Lc 17, 11-19). Mostra-nos que é com o coração que se vence a indiferença! Desperta-nos para escutar o grito, tantas vezes silenciado por uma maioria indiferente, de todos ‘os leprosos’ com que nos cruzamos diariamente. E há tantas lepras silenciosas, bem mais perigosas que a Hanseníase... “a que gritos se fecham os nossos ouvidos? Que ‘lepras’ não queremos que nos toquem?”, parece perguntar-nos de modo inquietante o Evangelho.

Mas a lição não termina na escuta, vai mais além! O acolhimento do Profeta peregrino de Nazaré gera um ‘perfume novo’ na vida de um dos errantes peregrinos da solidão (aquele 1 que no Evangelho é sempre sinal de festa jubilosa no coração de Deus quando, por exemplo, recupera ‘a ovelha perdida’). Com o coração em festa, ao ver que se cumpria no caminho a Esperança que havia gestado no mais íntimo do coração por toda a vida, o ‘peregrino da solidão’ volta para agradecer. Torna-se ‘peregrino do Encontro’ e, afinal, faz-nos descobrir que a cura de todas as lepras, as do coração e as da carne, se dá afinal com a fé no mais pequeno e simples dos gestos: agradecer. E só sabe agradecer quem se sente amado, acolhido, perdoado...É sempre oportuno recordar que, se um olhar multiplica a Esperança...um abraço aprofunda-a. BOA SEMANA!





"Jesus, o evangelizador por excelência e o Evangelho em pessoa, identificou-Se especialmente com os mais pequeninos (cf. Mt25, 40). Isto recorda-nos, a todos os cristãos, que somos chamados a cuidar dos mais frágeis da Terra. Mas, no modelo «do êxito» e «individualista» em vigor, parece que não faz sentido investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida.Embora aparentemente não nos traga benefícios tangíveis e imediatos, é indispensável prestar atenção e debruçar-nos sobre as novas formas de pobreza e fragilidade, nas quais somos chamados a reconhecer Cristo sofredor: os sem abrigo, os toxicodependentes, os refugiados, os povos indígenas, os idosos cada vez mais sós e abandonados, etc. Os migrantes representam um desafio especial para mim, por ser Pastor duma Igreja sem fronteiras que se sente mãe de todos. Por isso, exorto os países a uma abertura generosa, que, em vez de temer a destruição da identidade local, seja capaz de criar novas sínteses culturais. Como são belas as cidades que superam a desconfiança doentia e integram os que são diferentes, fazendo desta integração um novo fator de progresso! Como são encantadoras as cidades que, já no seu projeto arquitetónico, estão cheias de espaços que unem, relacionam, favorecem o reconhecimento do outro! Sempre me angustiou a situação das pessoas que são objeto das diferentes formas de tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito de Deus, perguntando a todos nós: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Onde está o teu irmão escravo? Onde está o irmão que estás matando cada dia na pequena fábrica clandestina, na rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade, naquele que tem de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado? Não nos façamos de distraídos! Há muita cumplicidade... A pergunta é para todos! Nas nossas cidades, está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos cheias de sangue devido a uma cómoda e muda cumplicidade" (Evangelii Guadium 209-211)