terça-feira, março 28, 2017

ABRE OS OLHOS...



Vamos começar com uma pergunta: ‘de quantas cegueiras são feitos os teus passos cotidianos’? Se em cada passo o teu coração fosse uma porta escancarada, uma vida que se lê com a filigrana da ternura, talvez os teus dias fossem menos indolentes e a tua vida menos monótona...

Se para amar não basta ter coração...o mesmo acontece para o ver, não basta ter olhos ou simplesmente olhar...quantas vezes feridos com a vida, e com os outros, o nosso coração habitado pelo rancor e o ódio nos torna ‘viandantes cegos de olhos abertos’.

Um coração cheio de alfândegas, portagens ou muros, onde tudo é taxado ou cobrado, torna-nos amargos diante do presente, diante dos outros, diante do dom. Quando é assim, continuamos naquela lógica dos discípulos: “quem é que pecou para ele nascer cego?” (Jo 9, 1-41).

Deus quer-nos de olhos abertos e de coração escancarado, não nos quer enclausurados em questionamentos estéreis que fazem d’Ele uma caricatura, um ‘deus-sádico’...o Deus de Jesus Cristo é Luz, é presença sanante, unção para os corações atribulados. Deus também não nos quer mendigos, quer-nos Filhos!

É assim que Ele, o Caminho, se faz peregrino e Deus-conosco nos trilhos do nosso cotidiano. É aí que Ele nos toca, cura...e salva. É assim que Ele enche de luz a nossa cegueira, desata os nós da nossa indigência e nos restitui à dignidade original com que Deus sempre nos sonhou e amou.

Voltemos à pergunta inicial: de quantas cegueiras são feitos os teus passos cotidianos? De quanta cegueira são feitos os teus olhares? Quanta cegueira habita o teu coração? A quem têm ‘ungido’ as tuas mãos?

Na graça do Espírito que nos convoca e anima, seguindo no discipulado daquele que é a Luz do mundo, há um Reino que nos desassossega e chama, dado que «o Espírito do Senhor está sobre mim, me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; envia-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor» (Lc 4, 18-19).

Eis a Alegria do nosso caminho Batismal-Pascal: Abrir os olhos do coração e da vida! Seguir Jesus e proclamar em gestos de reconciliação e unção a graça que nos liberta da mendicidade e de toda a cegueira, isto é, saber que “Ele é o Pastor que nos conduz, nada nos falta...nada tememos...pois a sua bondade e graça nos acompanham” (Salmo 23). Não é intimismo, é gratidão do coração, é missão! BOA SEMANA!


quarta-feira, março 15, 2017

Transfigur-AÇÃO!


De quanta escuta são feitos os nossos dias? Quanta ousadia carregam os nossos frágeis gestos? São perguntas essenciais para quem aceita a peregrinação que nos leva à Páscoa. Não há conversão ‘improvisada’, nem discipulado ‘morno’...a ousadia da fé pede-nos uma ‘totalidade’ feita de cotidiano, tecida nos encontros e palavras, nos olhares demorados e nos abraços que oferecem recomeço e Páscoa. É a fé que nos faz contemplar. É a escuta que nos faz avançar. É o discernimento que nos faz ousar. É a caridade que nos faz agir.

Convocados e reunidos pela Palavra que liberta e salva, somos esta semana inspirados e desafiados pela ‘vulnerável firmeza’ de Abraão. Sair, avançar, crer, caminhar...verbos que nos despertam os sentidos e a inteligência, atitudes que nos mobilizam de dentro para fora e nos colocam diante da mais essencial das questões: temer ou ousar?...o caminho iniciado por Abraão é metáfora de todas as nossas peregrinações...somos feitos para caminhar, para saborear cada passo degustando neles a eternidade...a quaresma, caminho que nos rasga o coração para acolher o dom e nos coloca como horizonte a Páscoa, faz-nos redescobrir o essencial da identidade cristã: caminhar...e descobrir o caminho como bênção e como Aliança.

Não se trata de correr quilómetros, nem mesmo de ver quem chega primeiro! No caminho da fé só se atrasa quem cede à banalidade...para os que ousam, mesmo de mãos sujas ou coração ferido, Deus espera-os e acompanha-os com a filigrana da sua ternura e misericórdia.

O Evangelho, Palavra que desperta o coração e rasga novos horizontes ao nosso existir, narra-nos que a intimidade com Deus exige itinerância (Mt 17, 1-9). Seria muito cómoda uma fé que nos anestesiasse ou nos afastasse da realidade...mas o nosso Deus não vive nas nuvens! “levantai-vos e não tenhais medo” não é apenas um imperativo, é uma condição existencial. O Evangelho não é para tornar ‘doce’ a nossa existência, é Palavra que quer tornar fecundo o nosso viver, por isso não há lugar para a acomodação, para uma experiência religiosa alienante do tipo maniqueísta...a realidade está aí, cheia de contradições e de ‘novas escravidões’, cheia de complexidade e de muitos corações feridos...precisamos Levantar! Deus espera-nos nas cidades e bairros, nas ruas e lugares que cotidianamente percorremos. Deus convoca-nos para não cedermos à tentação de um cristianismo de bem-estar ou de uma religião que formalmente satisfaça a idolatria do nosso ego...

Precisamos levantar e descer para não vermos a realidade somente do alto mas, sobretudo, lado a lado...olhos nos olhos, coração a coração, deixando que aí, nas nossas planícies e trilhos cotidianos, Deus nos interpele a (re)descobrir e a compartilhar a única luz que dá sentido, sabor e significado...Ele coloca-nos diariamente diante dos corações aflitos, cansados ou desnorteados...e aí nos sussurra: “Este é o meu Filho muito amado, escuta-O!”...e não será assim que a Luz transfigura a Ação?...Boa Semana!
(Salmo 26/27 na voz de João Paulo II)





quarta-feira, março 01, 2017

PORTA E CORAÇÃO ESCANCARADOS...


Chegou a quaresma! Não se trata de uma ‘prescrição médica’ para combater os ‘excessos pós carnaval’, também não é uma ‘maratona espiritual’ para recuperar ‘o tempo perdido’ e, se ainda persistir alguma dúvida, que fique claro que a quaresma também não é ‘um tempo sombrio e sisudo’ que a Igreja nos impõe para ver se chegamos à Páscoa ‘bem comportadinhos’.

A quaresma é o fruto maduro da Páscoa de Cristo! Com ela o próprio Deus, que se faz caminho e peregrino conosco, nos convida a iniciar esta peregrinação que não se resume apenas a 40 dias, é um itinerário de vida...de uma vida que na escuta e no acolhimento, no discernimento e na oração, na gratidão e no dom, vai colhendo em cada passo a Salvação, a Graça e a Misericórdia. A grande questão que o caminho Pascal que hoje (re)iniciamos nos coloca é: velhos propósitos ou vida nova? Repetição ou ousadia? Comodismo ou conversão? É que por debaixo das cinzas que hoje são colocadas na tua cabeça há um 'perfume novo', um 'tempo novo' e um 'fogo novo' com o qual Deus quer ungir a tua vida, sarar tuas feridas, renovar o teu coração.

O caminho quaresmal está grávido de Páscoa, de Vida em abundância. Se a cada ano a Igreja nos interpela e desafia ao recomeço é porque na sua sabedoria ela descobriu que o coração humano precisa ser estimulado para não se acomodar em vãs repetições, precisa ser desafiado a deixar as miopias rotineiras e a abrir-se de novo ao dom, ao outro, a Deus.

Não se trata, portanto, de fazer do Jejum um exercício diet ou fitness; muito menos fazer da Caridade um ‘aumento de boas intenções’; menos ainda de fazer da Oração um palavreado infinito onde não há espaço para a escuta, a gratidão e o discernimento. O segredo Pascal do qual está grávida toda a quaresma é-nos sussurrado por Jesus ao coração quando nos diz: “Assim, quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita, para que a tua esmola fique em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa. Quando rezardes, não sejais como os hipócritas, porque eles gostam de orar de pé, nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando rezares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa. Quando jejuardes, não tomeis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto, para mostrarem aos homens que jejuam. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa. Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não percebam que jejuas, mas apenas o teu Pai, que está presente em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa» (Mt 6, 1-18).

O Evangelho convoca-nos. A Igreja, como Mãe, acompanha-nos. Ao nosso lado caminham os peregrinos que são nossos irmãos. À nossa frente vai Cristo a pedir-nos para abrir a porta e escancarar o coração, pois é nesse ‘altar cotidiano’ que Ele nos vai revelar os segredos do Reino ao longo do caminho (Mt 25, 33-40) e assim se fazer Páscoa em nossa vida!
A Páscoa está plantada em nossos corações, chegou a hora de deixar o dom florescer e produzir fruto. Pelo caminho é bom ir relembrando:

“A Quaresma é o tempo para dizer não. Não à asfixia do espírito pela poluição causada pela indiferença, pela negligência de pensar que a vida do outro não me diz respeito; por toda a tentativa de banalizar a vida, especialmente a daqueles que carregam na sua própria carne o peso de tanta superficialidade. A Quaresma significa não à poluição intoxicante das palavras vazias e sem sentido, da crítica grosseira e superficial, das análises simplistas que não conseguem abraçar a complexidade dos problemas humanos, especialmente os problemas de quem mais sofre. A Quaresma é o tempo de dizer não; não à asfixia duma oração que nos tranquilize a consciência, duma esmola que nos deixe satisfeitos, dum jejum que nos faça sentir bem. A Quaresma é o tempo de dizer não à asfixia que nasce de intimismos que excluem, que querem chegar a Deus esquivando-se das chagas de Cristo presentes nas chagas dos seus irmãos: espiritualidades que reduzem a fé a culturas de gueto e exclusão.
A Quaresma é tempo de memória, é o tempo para pensar perguntando-nos: Que seria de nós se Deus nos tivesse fechado as portas? Que seria de nós sem a sua misericórdia, que não se cansou de perdoar-nos e sempre nos deu uma oportunidade para começar de novo? A Quaresma é o tempo para nos perguntarmos: Onde estaríamos nós sem a ajuda de tantos rostos silenciosos que nos estenderam a mão de mil modos e, com ações muito concretas, nos devolveram a esperança e ajudaram a recomeçar?
A Quaresma é o tempo para voltar a respirar, é o tempo para abrir o coração ao sopro do Único capaz de transformar o nosso pó em humanidade. É o tempo não tanto para rasgar as vestes frente ao mal que nos rodeia, como sobretudo para dar espaço na nossa vida a todo o bem que possamos realizar, despojando-nos daquilo que nos isola, fecha e paralisa. A Quaresma é o tempo da compaixão para dizer com o salmista: «Dai-nos [, Senhor,] a alegria da vossa salvação, sustentai-nos com um espírito generoso», a fim de proclamarmos com a nossa vida o vosso louvor (cf. Sal 51/50, 14), e que o nosso pó – pela força do vosso sopro de vida – se transforme em «pó enamorado»” (Papa Francisco, Homilia da Missa de imposição das cinzas 2017).

Chegou o tempo do (re)começo, não estranhes que te deseje: BOA PÁSCOA... É para lá que caminhamos!