um espaço de partilha, reflexão, discussão e anuncio do amor misericordioso de um Deus loucamente enamorado por todos os que criou à sua imagem e semelhança...
Vamos começar com uma pergunta: ‘de
quantas cegueiras são feitos os teus passos cotidianos’? Se em cada passo o teu
coração fosse uma porta escancarada, uma vida que se lê com a filigrana da
ternura, talvez os teus dias fossem menos indolentes e a tua vida menos
monótona...
Se para amar não basta ter
coração...o mesmo acontece para o ver, não basta ter olhos ou simplesmente
olhar...quantas vezes feridos com a vida, e com os outros, o nosso coração habitado
pelo rancor e o ódio nos torna ‘viandantes cegos de olhos abertos’.
Um coração cheio de alfândegas,
portagens ou muros, onde tudo é taxado ou cobrado, torna-nos amargos diante do
presente, diante dos outros, diante do dom. Quando é assim, continuamos naquela
lógica dos discípulos: “quem é que pecou para ele nascer cego?” (Jo 9, 1-41).
Deus quer-nos de olhos abertos e
de coração escancarado, não nos quer enclausurados em questionamentos estéreis
que fazem d’Ele uma caricatura, um ‘deus-sádico’...o Deus de Jesus Cristo é
Luz, é presença sanante, unção para os corações atribulados. Deus também não
nos quer mendigos, quer-nos Filhos!
É assim que Ele, o Caminho, se
faz peregrino e Deus-conosco nos trilhos do nosso cotidiano. É aí que Ele nos
toca, cura...e salva. É assim que Ele enche de luz a nossa cegueira, desata os
nós da nossa indigência e nos restitui à dignidade original com que Deus sempre
nos sonhou e amou.
Voltemos à pergunta inicial: de
quantas cegueiras são feitos os teus passos cotidianos? De quanta cegueira são
feitos os teus olhares? Quanta cegueira habita o teu coração? A quem têm ‘ungido’
as tuas mãos?
Na graça do Espírito que nos convoca
e anima, seguindo no discipulado daquele que é a Luz do mundo, há um Reino que
nos desassossega e chama, dado que «o Espírito do Senhor está sobre mim, me
ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; envia-me a proclamar a libertação
aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os
oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor» (Lc 4, 18-19).
Eis a Alegria do nosso caminho
Batismal-Pascal: Abrir os olhos do coração e da vida! Seguir Jesus e proclamar
em gestos de reconciliação e unção a graça que nos liberta da mendicidade e de
toda a cegueira, isto é, saber que “Ele é o Pastor que nos conduz, nada nos
falta...nada tememos...pois a sua bondade e graça nos acompanham” (Salmo 23).
Não é intimismo, é gratidão do coração, é missão! BOA SEMANA!
De quanta escuta são feitos os
nossos dias? Quanta ousadia carregam os nossos frágeis gestos? São perguntas
essenciais para quem aceita a peregrinação que nos leva à Páscoa. Não há
conversão ‘improvisada’, nem discipulado ‘morno’...a ousadia da fé pede-nos uma
‘totalidade’ feita de cotidiano, tecida nos encontros e palavras, nos olhares
demorados e nos abraços que oferecem recomeço e Páscoa. É a fé que nos faz
contemplar. É a escuta que nos faz avançar. É o discernimento que nos faz
ousar. É a caridade que nos faz agir.
Convocados e reunidos pela
Palavra que liberta e salva, somos esta semana inspirados e desafiados pela ‘vulnerável
firmeza’ de Abraão. Sair, avançar, crer, caminhar...verbos que nos despertam os
sentidos e a inteligência, atitudes que nos mobilizam de dentro para fora e nos
colocam diante da mais essencial das questões: temer ou ousar?...o caminho iniciado
por Abraão é metáfora de todas as nossas peregrinações...somos feitos para
caminhar, para saborear cada passo degustando neles a eternidade...a quaresma,
caminho que nos rasga o coração para acolher o dom e nos coloca como horizonte a
Páscoa, faz-nos redescobrir o essencial da identidade cristã: caminhar...e
descobrir o caminho como bênção e como Aliança.
Não se trata de correr
quilómetros, nem mesmo de ver quem chega primeiro! No caminho da fé só se
atrasa quem cede à banalidade...para os que ousam, mesmo de mãos sujas ou
coração ferido, Deus espera-os e acompanha-os com a filigrana da sua ternura e
misericórdia.
O Evangelho, Palavra que desperta
o coração e rasga novos horizontes ao nosso existir, narra-nos que a intimidade
com Deus exige itinerância (Mt 17, 1-9). Seria muito cómoda uma fé que nos anestesiasse
ou nos afastasse da realidade...mas o nosso Deus não vive nas nuvens! “levantai-vos
e não tenhais medo” não é apenas um imperativo, é uma condição existencial. O
Evangelho não é para tornar ‘doce’ a nossa existência, é Palavra que quer
tornar fecundo o nosso viver, por isso não há lugar para a acomodação, para uma
experiência religiosa alienante do tipo maniqueísta...a realidade está aí,
cheia de contradições e de ‘novas escravidões’, cheia de complexidade e de muitos
corações feridos...precisamos Levantar! Deus espera-nos nas cidades e bairros,
nas ruas e lugares que cotidianamente percorremos. Deus convoca-nos para não
cedermos à tentação de um cristianismo de bem-estar ou de uma religião que
formalmente satisfaça a idolatria do nosso ego...
Precisamos levantar e descer para
não vermos a realidade somente do alto mas, sobretudo, lado a lado...olhos nos
olhos, coração a coração, deixando que aí, nas nossas planícies e trilhos cotidianos,
Deus nos interpele a (re)descobrir e a compartilhar a única luz que dá sentido,
sabor e significado...Ele coloca-nos diariamente diante dos corações aflitos,
cansados ou desnorteados...e aí nos sussurra: “Este é o meu Filho muito amado,
escuta-O!”...e não será assim que a Luz transfigura a Ação?...Boa Semana!
Chegou
a quaresma! Não se trata de uma ‘prescrição médica’ para combater os ‘excessos
pós carnaval’, também não é uma ‘maratona espiritual’ para recuperar ‘o tempo
perdido’ e, se ainda persistir alguma dúvida, que fique claro que a quaresma
também não é ‘um tempo sombrio e sisudo’ que a Igreja nos impõe para ver se
chegamos à Páscoa ‘bem comportadinhos’.
A quaresma é o fruto maduro da Páscoa
de Cristo! Com ela o
próprio Deus, que se faz caminho e peregrino conosco, nos convida a iniciar
esta peregrinação que não se resume apenas a 40 dias, é um itinerário de
vida...de uma vida que na escuta e no acolhimento, no discernimento e na
oração, na gratidão e no dom, vai colhendo em cada passo a Salvação, a Graça e
a Misericórdia. A grande questão que o caminho Pascal que hoje (re)iniciamos
nos coloca é: velhos propósitos ou vida nova? Repetição ou ousadia?
Comodismo ou conversão? É que por debaixo das cinzas que hoje são
colocadas na tua cabeça há um 'perfume novo', um 'tempo novo' e um 'fogo
novo' com o qual Deus quer ungir a tua vida, sarar tuas feridas, renovar o
teu coração.
O caminho quaresmal está grávido de
Páscoa, de Vida em
abundância. Se a cada ano a Igreja nos interpela e desafia ao recomeço é porque
na sua sabedoria ela descobriu que o coração humano precisa ser estimulado
para não se acomodar em vãs repetições, precisa ser desafiado a deixar as
miopias rotineiras e a abrir-se de novo ao dom, ao outro, a Deus.
Não
se trata, portanto, de fazer do Jejum
um exercício diet ou fitness; muito menos fazer da Caridade um ‘aumento de boas intenções’; menos ainda de fazer da Oração um palavreado infinito onde não
há espaço para a escuta, a gratidão e o discernimento. O segredo Pascal do qual está grávida toda a quaresma é-nos sussurrado
por Jesus ao coração quando nos diz: “Assim, quando deres esmola, não
toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas
ruas, para serem louvados pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua
recompensa. Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a
direita, para que a tua esmola fique em segredo; e teu Pai, que vê o que está
oculto, te dará a recompensa. Quando rezardes, não sejais como os hipócritas,
porque eles gostam de orar de pé, nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para
serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam a sua recompensa.
Tu, porém, quando rezares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai
em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa. Quando
jejuardes, não tomeis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o
rosto, para mostrarem aos homens que jejuam. Em verdade vos digo: já receberam
a sua recompensa. Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto,
para que os homens não percebam que jejuas, mas apenas o teu Pai, que está
presente em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa»
(Mt 6, 1-18).
O
Evangelho convoca-nos. A Igreja, como Mãe, acompanha-nos. Ao nosso lado
caminham os peregrinos que são nossos irmãos. À nossa frente vai Cristo a
pedir-nos para abrir a porta e escancarar o coração, pois é nesse ‘altar
cotidiano’ que Ele nos vai revelar os segredos do Reino ao longo do caminho (Mt
25, 33-40) e assim se fazer Páscoa em nossa vida!
A
Páscoa está plantada em nossos corações, chegou a hora de deixar o dom
florescer e produzir fruto. Pelo caminho é bom ir relembrando:
“A
Quaresma é o tempo para dizer não.
Não à asfixia do espírito pela poluição causada pela indiferença, pela
negligência de pensar que a vida do outro não me diz respeito; por toda a
tentativa de banalizar a vida, especialmente a daqueles que carregam na sua
própria carne o peso de tanta superficialidade. A Quaresma significa não à
poluição intoxicante das palavras vazias e sem sentido, da crítica grosseira e
superficial, das análises simplistas que não conseguem abraçar a complexidade
dos problemas humanos, especialmente os problemas de quem mais sofre. A
Quaresma é o tempo de dizer não; não à asfixia duma oração que nos tranquilize
a consciência, duma esmola que nos deixe satisfeitos, dum jejum que nos faça
sentir bem. A Quaresma é o tempo de dizer não à asfixia que nasce de intimismos
que excluem, que querem chegar a Deus esquivando-se das chagas de Cristo
presentes nas chagas dos seus irmãos: espiritualidades que reduzem a fé a
culturas de gueto e exclusão.
A
Quaresma é tempo de memória, é o
tempo para pensar perguntando-nos: Que seria de nós se Deus nos tivesse fechado
as portas? Que seria de nós sem a sua misericórdia, que não se cansou de
perdoar-nos e sempre nos deu uma oportunidade para começar de novo? A Quaresma
é o tempo para nos perguntarmos: Onde estaríamos nós sem a ajuda de tantos
rostos silenciosos que nos estenderam a mão de mil modos e, com ações muito
concretas, nos devolveram a esperança e ajudaram a recomeçar?
A
Quaresma é o tempo para voltar a
respirar, é o tempo para abrir o coração ao sopro do Único capaz de
transformar o nosso pó em humanidade. É o tempo não tanto para rasgar as vestes
frente ao mal que nos rodeia, como sobretudo para dar espaço na nossa vida a
todo o bem que possamos realizar, despojando-nos daquilo que nos isola, fecha e
paralisa. A Quaresma é o tempo da compaixão para dizer com o salmista: «Dai-nos
[, Senhor,] a alegria da vossa salvação, sustentai-nos com um espírito
generoso», a fim de proclamarmos com a nossa vida o vosso louvor (cf. Sal
51/50, 14), e que o nosso pó – pela força do vosso sopro de vida – se transforme
em «pó enamorado»”(Papa
Francisco, Homilia da Missa de imposição das cinzas 2017).
Chegou
o tempo do (re)começo, não estranhes que te deseje: BOA PÁSCOA... É para lá
que caminhamos!