O futuro está diante de nós como
promessa e como dom. Sempre fui contemplativo de gente que não teme abrir
portas! Encher de ousadia e de espanto o quotidiano é um milagre que Deus
sonhou para todos nós.
Agora que um novo ano se
aproxima, é habitual fazer balanços e propósitos. Reina ainda na maioria de nós
a ideia de que a vida é feita apenas de ciclos (fechados!), o que faz com que
em boa parte das ocasiões vivamos apenas centrados no fragmento, incapazes de
olhar o mosaico, a totalidade.
Gosto de olhar a vida como
um continuum, isto é, uma sequência que não dispensa a memória e que não
se fecha ao futuro. É certo que ao longo deste ano vivemos vários (re)começos.
Por entre sobressaltos, medos e impotências, foram crescendo também a
esperança, a solidariedade e a lucidez de quem sente e sabe que tudo isto que
estamos ainda vivendo é ‘novo’, mas não é ‘normal’. Aliás, a famosa expressão
‘novo normal’ tornou-se, a meu ver, uma aberração existencial. Ela é
incapaz de expressar o essencial daquilo que é verdadeiramente humano: a
ternura, o afeto. Mostra-nos a vida mais como uma fatalidade do que como uma
possibilidade! Se é certo que vivemos quotidianamente uma certa dramaticidade
associada ao fato de existirmos, não é menos verdade que no quotidiano há também
a promessa e o dom de uma “primavera existencial”, isto é, a possibilidade
continua de nos (re)descobrirmos humanos, mais humanos, simplesmente
humanos!
O tempo é sempre dom. Habituados
que estamos à cadência voraz de nossos relógios, vamos assumindo ciclos, novos
ciclos, apenas como a soma de dias, meses ou anos. É por isso que os nossos
‘propósitos’ de ano novo (quase sempre!) falham, uma vez que nos impomos
‘maratonas existenciais’ que nos farão correr muito, mas saborear pouco o
instante, o milagre que perpassa cada respirar e cada encontro. Edgar Morin, um
dos pensadores mais lúcidos e provocadores do nosso tempo, em sua mais recente
obra “É hora de mudarmos de via”, instiga-nos a um olhar mais profundo e
demorado sobre o quotidiano, os ritmos, o sabor e o significado de todas as
coisas ao questionar-nos: “O isolamento foi uma reclusão, mas também uma
libertação interior em relação ao tempo cronometrado(…) Terminando o isolamento
vamos retomar a corrida infernal?”.
Habituados que estamos à
superficialidade devoradora do tempo, a densidade de uma existência tecida
pelas exigências da ternura parece-nos quase uma utopia. Em tempos de
inteligência artificial, internet das coisas e digitalização da memória, talvez
seja oportuno recordarmos o essencial: “Há dias, falando com alguns cientistas,
comentava-se a inteligência artificial e os robôs… há robôs programados para
tudo e para todos, e isto vai progredindo. E eu disse-lhes: “Mas o que nunca
serão capazes de fazer os robôs?” Eles pensaram, deram sugestões, mas no final
concordaram num ponto: a ternura. Isto os robôs não serão capazes de fazer. E é
isto que Deus nos traz hoje: uma forma maravilhosa pela qual Deus quis vir ao
mundo, o que reaviva a ternura em nós, a ternura humana que está próxima
daquela de Deus. E hoje temos tanta necessidade de ternura, tanta necessidade
de carícias humanas, face a tanta miséria! Se a pandemia nos obrigou a estar
mais distantes, Jesus, no presépio, mostra-nos o caminho da ternura para
estarmos próximos, para sermos humanos. Sigamos este caminho” (Papa Francisco,
Audiência Geral de 23 de dezembro de 2020).
Miguel Torga, insigne poeta e
intenso buscador do humano, cantou assim o (re)começo: «Recomeça se puderes,
sem angústia e sem pressa. E os passos que deres, nesse caminho duro do futuro
dá-os em liberdade. Enquanto não alcances não descanses. De nenhum fruto
queiras só metade. […] Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças…».
Na hora de (re)começar, acredito
que o essencial não será fazer, mais uma vez, os tão famosos ‘propósitos’, mas
sim duas perguntas essenciais: Como vou saborear, agradecer e compartilhar
o tempo em 2021? Com quanta ternura vou perpassar cada gesto, palavra ou
encontro?
(Re)começa! Feliz 2021.