“Tu nos criastes para ti, ó
Senhor,
e nosso coração anda inquieto
enquanto não repousa em ti…”
(Santo Agostinho, Confissões)
O nosso coração move-se e comove-se. Não
obstante todas as vulnerabilidades, há sempre uma sede de bem e de verdade, de
beleza e de amor que o dinamiza. Um coração que não se envolve, que não se
deixa tocar e ‘ferir’ pela realidade, sobretudo a daqueles que estão nas margens,
é um coração em agonia na indiferença e em marcha fúnebre para a ‘solidão
relacional’. Um coração que não sabe chorar nem recolher como diamantes as
lágrimas do outro, no jardim da vida, é uma realidade entorpecida, cega…é que só
sabe chorar, o coração que aprendeu a festejar, a acolher, a agradecer, a
escutar…o coração que soube atravessar todas as estações da vida, sem pressa e
sem medo. Recorda-nos, a este propósito, o Papa Francisco: “A Deus não lhe é
indiferente o mundo, mas ama-o até ao ponto de entregar o seu Filho pela
salvação de todo o homem” (Mensagem Quaresma 2015).
Sim, o Coração de Deus não é
indiferente e convoca-nos para fazermos a diferença…com coração! Porque tudo o
que não nasce do afecto, não toca a realidade nem converte a vida. É o afecto
que move o mundo, é a ternura que o abraça, é o amor que o transforma. Há 3
dinamismos do coração que nos podem ajudar muito esta quaresma:
Caminhar com UM CORAÇÃO PEREGRINO
Sendo convite a fazer caminho, a
quaresma é um tempo para nos redescobrirmos como discípulos. É o tempo para bebermos
‘nas fontes da salvação’ a alegria de cada passo dado. É tempo para
caminharmos, sem medo, de pés descalços, sem qualquer ‘blindagem’, sem ‘jogos
de defesa’ e muito menos ‘estratégias de ataque’…um coração peregrino sabe
deter-se apenas no fundamental e fazer acampamento com a sua tenda somente nos
lugares onde o discernimento convoca para ir mais fundo, para vencer o banal. É
aí também, no lugar da história e da ‘memória fundamental’, que o coração
peregrino aprende a ser um ‘místico do quotidiano’ deixando-se surpreender pelo
milagre da vida e dos passos dados com aquela graça de quem sabe ver ‘o eterno
no instante’…
Tocar o outro com UM CORAÇÃO
CONVERTIDO
Para atravessar o deserto é preciso
partilhar o pão e o caminho. Por isso a quaresma é provocação constante a tecer
a ‘filigrana da vida’ deixando que o outro tome conta de mim, da minha
história. Nenhum de nós é uma obra já acabada. Somos um diamante que continua a
ser ‘esculpido’, delicadamente, não só por Deus e seu amor infinito, mas também
pela graça infinita dos outros que têm muito para nos contar, partilhar,
confiar. Por entre escuta, diálogo e cumplicidade, a vida toma conta de nós com
o mesmo fulgor com que a eternidade atravessou a morte para sempre. E, se toda
a conversão nasce da escuta, é importante não esquecer que a conversão também é
gerada no encontro. É por isso que a quaresma é um ‘despertador permanente para
a nossa caridade’. Sim, caridade! Caridade sem fingimento, como diria S. Paulo.
Aquele amor (e)terno que sabe ver o outro, ver o bem no outro e deixar-se
contemplar pelo outro. Sem máscaras e sem rótulos. Porque nenhum de nós é uma
etiqueta, nem o nosso agir pode simplesmente corresponder ao que os outros
esperam de nós. Não é à toa que o Papa Francisco nos diz: “o Cristão é aquele
que permite a Deus revesti-lo da sua bondade e misericórdia, revesti-lo de
Cristo para se tornar, como Ele, servo de Deus e dos homens (...) A quaresma é um tempo propício para nos deixarmos servir por Cristo e, deste modo, tornarmo-nos como Ele". É que
Cristo anda pelos nossos caminhos, peregrino, ao nosso lado. Sendo irmão e
companheiro de viagem deixa-se abraçar ‘no outro’ quando o nosso coração sai da
‘zona de conforto’, quando somos profetas capazes de derrubar os respeitos
humanos que nos querem ‘comportadinhos’ mas que dificilmente nos deixarão
alguma vez ‘ser santos’. Sim a quaresma é tempo e caminho para tocar a
fragilidade do outro, e a nossa, sem termos medo de sujar as mãos! E se Deus é
o primeiro a ser Pai…porque é que nós somos tantas vezes juízes?...
Testemunhar com UM CORAÇÃO PERFUMADO
Porque é oferta de recomeço e porta
escancarada para a Páscoa, o tempo da quaresma é projecto a viver cada passo
com um ‘coração de alabastro’ (Mateus 26, 7). Um coração perfumado que aprendeu
a derramar Páscoa em cada pegada da vida, em cada encontro, em cada história.
Um coração perfumado é sempre ‘casa do Ressuscitado’, escola de ternura e
misericórdia. Nunca é em demasia lembrar que: “ter um coração misericordioso
não significa ter um coração débil. Quem quer ser misericordioso precisa de um
coração forte, firme, fechado ao tentador mas aberto a Deus; um coração que se
deixe impregnar pelo Espírito e levar pelos caminhos do amor que conduzem aos
irmãos e irmãs; no fundo, um coração pobre, isto é, um coração que conhece as
suas limitações e se gasta pelo outro” (Papa Francisco).
…É para tudo isto que nos convoca a
Páscoa! Ela vem aí.
Onde e como está o teu coração?
1 comentário:
E assim começa a minha quaresma... Com a lembrança de onde está e como está o meu coração...
No dia de Páscoa, espero que esteja junto com o meu tesouro...
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