De quanta escuta são feitos os
nossos dias? Quanta ousadia carregam os nossos frágeis gestos? São perguntas
essenciais para quem aceita a peregrinação que nos leva à Páscoa. Não há
conversão ‘improvisada’, nem discipulado ‘morno’...a ousadia da fé pede-nos uma
‘totalidade’ feita de cotidiano, tecida nos encontros e palavras, nos olhares
demorados e nos abraços que oferecem recomeço e Páscoa. É a fé que nos faz
contemplar. É a escuta que nos faz avançar. É o discernimento que nos faz
ousar. É a caridade que nos faz agir.
Convocados e reunidos pela
Palavra que liberta e salva, somos esta semana inspirados e desafiados pela ‘vulnerável
firmeza’ de Abraão. Sair, avançar, crer, caminhar...verbos que nos despertam os
sentidos e a inteligência, atitudes que nos mobilizam de dentro para fora e nos
colocam diante da mais essencial das questões: temer ou ousar?...o caminho iniciado
por Abraão é metáfora de todas as nossas peregrinações...somos feitos para
caminhar, para saborear cada passo degustando neles a eternidade...a quaresma,
caminho que nos rasga o coração para acolher o dom e nos coloca como horizonte a
Páscoa, faz-nos redescobrir o essencial da identidade cristã: caminhar...e
descobrir o caminho como bênção e como Aliança.
Não se trata de correr
quilómetros, nem mesmo de ver quem chega primeiro! No caminho da fé só se
atrasa quem cede à banalidade...para os que ousam, mesmo de mãos sujas ou
coração ferido, Deus espera-os e acompanha-os com a filigrana da sua ternura e
misericórdia.
O Evangelho, Palavra que desperta
o coração e rasga novos horizontes ao nosso existir, narra-nos que a intimidade
com Deus exige itinerância (Mt 17, 1-9). Seria muito cómoda uma fé que nos anestesiasse
ou nos afastasse da realidade...mas o nosso Deus não vive nas nuvens! “levantai-vos
e não tenhais medo” não é apenas um imperativo, é uma condição existencial. O
Evangelho não é para tornar ‘doce’ a nossa existência, é Palavra que quer
tornar fecundo o nosso viver, por isso não há lugar para a acomodação, para uma
experiência religiosa alienante do tipo maniqueísta...a realidade está aí,
cheia de contradições e de ‘novas escravidões’, cheia de complexidade e de muitos
corações feridos...precisamos Levantar! Deus espera-nos nas cidades e bairros,
nas ruas e lugares que cotidianamente percorremos. Deus convoca-nos para não
cedermos à tentação de um cristianismo de bem-estar ou de uma religião que
formalmente satisfaça a idolatria do nosso ego...
Precisamos levantar e descer para
não vermos a realidade somente do alto mas, sobretudo, lado a lado...olhos nos
olhos, coração a coração, deixando que aí, nas nossas planícies e trilhos cotidianos,
Deus nos interpele a (re)descobrir e a compartilhar a única luz que dá sentido,
sabor e significado...Ele coloca-nos diariamente diante dos corações aflitos,
cansados ou desnorteados...e aí nos sussurra: “Este é o meu Filho muito amado,
escuta-O!”...e não será assim que a Luz transfigura a Ação?...Boa Semana!
(Salmo 26/27 na voz de João Paulo II)
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