segunda-feira, abril 20, 2015

O ÚLTIMO ABRAÇO…


«Adeus Luís. Muito e muito obrigado. Por tudo!
E se te magoei alguma vez em alguma coisa perdoa-me»
(02 Setembro 2014)


Senti, naquela hora, que aquele seria o seu jeito de me dizer um "adeus Luís, até ao céu!" sem me deixar inquieto porque sabia que eu iria sofrer muito quando a 'irmã morte' o viesse buscar. Guardei no coração as palavras até hoje, dia em que a notícia da sua morte despertou a memória (forçadamente) adormecida de uma hora que não queria que chegasse. 

Sinto ainda hoje o calor e o afeto daquele abraço de pai, de mestre, de amigo, de irmão. Foi à porta da casa que era também ‘abrigo de todas as horas’ para os que procuravam consolo, acolhimento, ternura, um conselho ou uma palavra de entusiasmo. Ali vivia modestamente, e não podia ser de outra maneira, pois a medida do seu existir era o Evangelho. Com um coração inquieto repetiu-me em cada dia do último mês de agosto: “sabes, já me resta pouco tempo!”. Vendo que o coração do ‘guerreiro de todas as horas’ começava a dar sinais de cansaço extremo, sempre tentei aliviá-lo nos trabalhos o mais que podia e, por entre o refrão que me repetia, lá lhe dizia: “Não pense nisso. Teimoso como é ainda vai viver até aos 100!”. Ria com aquele seu jeito tão expressivo e concluía com um ar de quase despedida: “Não filho, não. Estou cansado”. Mas, de imediato retomava o entusiasmo contando-me, mais uma vez, as histórias desde quando tinha chegado a esta terra (esquecida e sofrida!) do nordeste do Brasil. Aquela doce repetição nunca foi para mim um peso, havia sempre mais um pormenorzinho que me revelava um novo ‘diamante’ da sua alma de Pai e pastor, de irmão e amigo, de confidente e de discípulo.

 Era assim o Padre Manuel Neves, de alma límpida e cristalina como a água mais pura, com um coração cheio de Páscoa, inquieto para que o nome de Jesus e de Maria fossem sempre mais conhecidos e amados, sereno quando via o seu povo fazer silêncio para rezar, entusiasmado quando via o seu rebanho levantar a voz para denunciar tudo o que era ‘anti-humano’ e profundamente feliz quando, com os laços da fraternidade nascida do Evangelho, via o Povo ser comunidade que vive a fé e transforma a vida. Era um profeta. Um santo. Um servo de todos. Por amor. Como Jesus. Até ao fim. 

Hoje volto à porta da casa paroquial de Chapadinha com o coração rasgado pela dor da sua partida. Sinto-me órfão! O Padre Neves era para mim um segundo pai. Quando nos conhecemos pela primeira vez, na Sé velha de Coimbra, em 2006, na celebração de envio das irmãs Criaditas dos pobres para a cidade de Chapadinha, gerou-se de imediato uma comunhão e sintonia que só a fé pode gerar. Desde aquela hora que passei a ouvi-lo com ‘um coração de filho’.

Na comunhão, intimidade e sintonia que se foi gerando, acabámos por ser nas horas de alegria, mas também naquelas da tristeza, amigos, irmãos e confidentes. Como ‘filho’ aprendi muito com ele. E o muito que lhe devo só pode ser agradecido com o coração, porque para o Padre Neves o essencial sempre foi a gratuidade. Não se trata de uma homenagem ‘póstuma’ onde só se dizem as virtudes, porque sempre lhe disse o que pensava dele, o bem que ele me fazia e o quanto lhe era grato. Leal na amizade e na comunhão que nos unia partilhámos o sonho de uma Igreja sempre mais missionária, sem medo de tocar a terra, mesmo que ferindo-se ou ‘sujando as mãos’ com a dor dos outros. Inúmeras vezes me falava do quanto ecoavam, sempre mais fortes, dentro dele os rumos traçados pelo Concílio Vaticano II e a inspiração determinada e profética de Paulo VI (queria ir a Roma quando fosse a sua canonização!). Sofria muito, aliás muitíssimo, quando via o seu povo ser esmagado pela mentira e pela corrupção que geram a miséria e desfiguram o humano. Por isso era tão ‘rebelde’! Não gostava de uma Igreja de ‘bem comportadinhos’, fechada em seguranças de um tempo que já passou e ‘blindada’ diante do presente e da novidade que Deus sempre suscita.

Há conversas e conselhos que guardarei para sempre. Foram ditos em horas providenciais para mim! Na memória do coração e da fé guardarei não só o seu jeito, às vezes rude mas sempre terno, mas também as lágrimas que ele dificilmente deixava escapar mas que eu pude, algumas vezes, testemunhar. Como Pai escondia-as quase sempre naquele seu: “Obrigado. Muito obrigado!” ou então no seu desajeitado: “porra, pá!”. Mas o coração comovia-se, e muito!

Se o pai que gera na carne sofre para evitar a dor dos seus filhos, o Padre Neves, pai que gerava no Espírito, sofria muito com a dor continuada dos que não tinham que comer e eram ‘anestesiados’ pela ilusão de uma cesta básica, nascida da desonestidade política e da falta de compromisso social de tantos cristãos que a única coisa que querem do Evangelho é um ‘Deus-doce’, à sua medida, e que não os incomode muito; sofria ao ver os velhinhos tão abandonados e explorados por filhos e netos ingratos; sofria quando as famílias que ele tanto amava iam sendo ‘devoradas’ e destruídas pelo álcool, pela droga, a infidelidade e por uma sociedade promíscua; sofria quando via os jovens acomodados, sem rumo, sem voz e sem futuro; sofria com as injustiça e calúnias vindas de quem não percebia que o seu tom de voz mais elevado, os seus gestos mais ‘agressivos’, a sua contínua denuncia do mal nada tinha a ver com ‘política partidária’ mas com uma vivência séria (e a sério!) do Evangelho de Cristo, o Filho de Deus, que era o seu único amor. A sua paixão. A sua Vida!

Veio de longe e fez-se próximo de todos. Tudo o que tinha repartiu. Gastou-se até ao fim e deixa-nos um caminho aberto: a estrada do Evangelho.

Para honrar o Padre Neves não será preciso, a título póstumo, dizer muitas coisas. As homenagens públicas das instituições ele mesmo as dispensaria e diria, com aquele seu jeito, “ó filhos ajudem os pobres a sair da miséria, criem hospitais dignos para os nossos doentes e velhinhos, cuidem das famílias, amem e protejam as crianças, eduquem os jovens e façam surgir oportunidades de um futuro melhor nesta terra. Que os políticos sejam honestos e que se dê cultura às pessoas”. Por fim, estou certo, acrescentaria: “e os católicos que estão aqui, que não sejam ‘catoliquinhos’ mas sejam homens e mulheres com as bem-aventuranças no coração e que façam ver o Reino de Deus já aqui” e iria concluir: “obrigado por tudo. Muito obrigado!”.


Padre Neves, até ao céu! Não morrerá a semente que plantou. O que em nós foi semeado foi o Evangelho. Dizer-lhe obrigado é pouco, mas é também o tudo que sempre me ensinou (tão profundamente bem!) a dizer. É que, tal como me ensinou, serei eu agora a esconder as lágrimas repetindo-lhe uma última vez: “Obrigado. Muito obrigado!”. “Porra, pá!”. 


*O texto-partilha não é simplesmente uma 'homenagem' ao Padre Neves, é também um "Obrigado. muito obrigado!" ao Padre Casimiro que, em todos estes anos, foi irmão e companheiro desta grande peregrinação vivida em Chapadinha pelo Pe Neves e também ao Pe Pedro José, da Diocese de Aveiro, que ali esteve 10 anos como missionário e com os quais aprendi a ternura do Evangelho sem nenhum 'verniz' ou 'adoçante'.