terça-feira, novembro 17, 2015

NÃO TENHO MEDO!



Os recentes acontecimentos no coração da Europa fizeram também com que o nosso coração ficasse em sobressalto. Uma vez mais a humanidade se reencontra com o agir desumano e com a blasfêmia que usa o nome de deus para destruir.

De imediato se reagiu e se decidiu que o ‘contra-ataque’ seria a melhor resposta...não bastava já sermos derrotados pela crueldade do coração humano que quer instrumentalizar deus, e temos agora os ‘deuses’ da humanidade a garantir-nos que pela (in)segurança da guerra sairemos vencedores nesta batalha! Pobres de nós que nos perdemos entre guerras sem sentido, guerras que fazemos dentro e fora de nós e que apenas alimentam (e aumentam!) o ego... A nossa passividade encontra habitualmente como única saída a(s) guerra(s) - dentro e fora de nós!

Para não reagir também eu ‘a quente’, em vez de colocar a bandeira francesa no perfil do facebook, fui rezando (e repetindo) estes dias uma das bem-aventurança: “bem-aventurados os fazedores da paz, porque serão chamados filhos de Deus”. Dei por mim a pensar: de quantos fundamentalismos (religiosos) é feita a nossa vida quotidiana?...às vezes são tantos! Logo a começar pelo modo como nos olhamos uns aos outros na rua (o meu olhar é contemplativo ou acusador?), passando pelo modo como nos cumprimentamos (o meu ‘bom dia’ é apenas um ato formal?), até ao modo como nos tocamos/abraçamos (ofereço aconchego no meu abraço?), já para não falar nas palavras que dizemos uns aos outros na família ou no trabalho...afinal, tem dias em que podemos ser tão, ou mais, fundamentalistas como aqueles que realizaram o massacre em Paris...e disso não nos damos conta, nem protestamos, nem ‘bandeirizamos’ os nossos perfis!

Eu creio na não-violência como resposta de Paz aos fazedores da guerra. Não é passividade. Muito menos resignação. É uma opção. Cheia de Evangelho! É por isso que não tenho medo! Não tenho medo de confiar nas pessoas. Não tenho medo dos islâmicos. Não tenho medo dos refugiados. Não tenho medo de Deus. Não tenho medo de ser chamado filho de Deus! Digo-o para que não tenhamos, também nós, medo de nos lembrar: do Darfur, do Sudão do Sul, das perseguições na Nigéria, das vitimas de Minas gerais, dos muros fechados numa Europa ‘mãe da democracia’, das redes de tráficos de pessoas, do trabalho escravo na China, na Índia e no Bangladesh...e de todos os outros fundamentalismos (religiosos), que também nós somos e vivemos todos os dias, e diante dos quais não nos indignamos.

A promessa do Evangelho que escutámos este Domingo: “Passará o Céu e a Terra, mas as minhas palavras não passarão” (Mc 13, 24-32) não é palavra do passado, é realidade! Que o medo não nos torne fundamentalistas (religiosos) num permanente ‘contra-ataque’ e que a certeza da Paz, que nasce no coração dos que se sabem filhos de Deus, nos leve a sermos mais ousados e criativos. Não é ingenuidade. É uma opção. É Evangelho. É presença do Ressuscitado. A paz esteja contigo, meu irmão de cada Domingo! BOA SEMANA!

terça-feira, novembro 03, 2015

UMA SANTIDADE...INCÓMODA!


Para contemplar a vida não basta abrir os olhos, é preciso ‘destrancar’ o coração. Consegues ainda ‘degustar’ o sabor das caricias da tua avó quanto te sentavas no seu colo? E ainda te lembras do ‘perfume’ deixado em ti pelo sorriso amável daquele velhinho a quem deste lugar no autocarro? Ah, já para não falar do sorriso penetrante daquele irmão-mendigo que tiveste a coragem de olhar nos olhos e, ao dares uma moeda, deste também ternura e tempo. Ainda te lembras? Se tudo isso são para ti mais do que memórias, então sê bem-vindo à Santidade!

É na rotina dos dias que se ‘pavimenta’ de eternidade o caminho. E há tantos que abriram caminho de eternidade para nós...não saberemos nunca agradecer o suficiente! Na verdade, o que celebramos com a solenidade de ‘todos os santos’ não é somente esta coragem de fazer extraordinário o que é pequeno e quotidiano, celebramos sobretudo a simplicidade (anónima e universal!) de quem sabe encher de eterno cada acontecimento, cada encontro, cada pessoa. E porque o Evangelho é sempre desassossego do coração e da vida, celebrar a santidade é saber-se desafiado pela misericórdia e ternura de Deus a ser oferta de recomeço, buscador de dignidade, um grito profético e ensurdecedor de um coração insurreto na caridade e na justiça. Não é à toa que a liturgia da Igreja nos coloca, no coração e na vida, as Bem-Aventuranças (Mt 5) nossa identidade fundamental, já a preparar-nos para o exame (final) do Amor (Mt 25), celebrado como Vida (e)terna!

Se o Batismo nos faz profetas, então que a nossa santidade seja ‘incómoda’ e de ‘mãos sujas’. Que ao altar da vida levemos como incenso o ‘perfume rude’ dos sem teto; o perfume ‘barato e incómodo’ das mulheres de rua que vendem a sua carne (que é a mesma de Cristo!) a tantos ‘bem comportadinhos’ que vivem de paz com deus, mas são devoradores dos irmãos; o ‘perfume agonizante’ de tantos que vivem carregando pesos de um passado que os devora e não os deixa entrever um futuro de paz; o perfume de uma igreja “acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas” (EG 40). Porque “Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência, é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida” (EG 49).

Quando nos deixamos tocar e ‘perfumar’ pelos últimos, então o Evangelho torna-se a nossa medida de ser e agir, o bálsamo quotidiano com que aromatizamos todos, e tudo, que tocamos... e haverá perfume melhor do que abraçar  Deus com as nossas mãos sujas?!

Compartilho contigo a vida das palavras de um pequeno grande profeta, que mesmo estando no céu, continua a despertar aqui na terra uma ‘santidade incómoda’:

«Pelos tempos fora se destacaram santos e santas:
de mãos erguidas, de mãos dadas, de mãos largas,
de mãos rotas, de mãos cheias, de mãos limpas...
Nestes dias, e como 'sinal dos tempos',
exigem-se santos e santas
de mãos sujas,
de mãos rudes.
Mãos admiráveis, de cristãos e cristãs, manchadas
porque remexem escórias sociais,
e de vidas conspurcadas, não raro, tiram pérolas!
Adoráveis mãos firmes de crentes
tratadas como dementes,
a construir sacrários vivos de Cristo.
- Oh paradoxo evangélico
um Cristo demitido do corpo social.
Um Cristo ressuscitado porém,
que mãos sujas desenterram de escombros;
vidas aos tombos... remidas também! »
(José Dias da Silva)