Neste DIA DO OBRIGADO, vale a pena agradecer e deixar-se
guiar por estas palavras:
“O mais comum é agradecer o que nos foi dado. E não nos
faltam motivos de gratidão. Há, é claro, imensas coisas que dependem do nosso
esforço e engenho, coisas que fomos capazes de conquistar ao longo do tempo,
contrariando mesmo o que seria previsível, ou que nos surgiram ao fim de um
laborioso e solitário processo. Mas isso em nada apaga o essencial: as nossas
vidas são um receptáculo do dom.
A nossa história começou antes de nós e persistirá depois.
Somos o resultado de uma cadeia inumerável de encontros, de gestos, boas
vontades, sementeiras, afagos, afetos. Colhemos inspiração e sentido de vidas
que não são nossas, mas que se inclinam pacientemente para nós, iluminando-nos,
fundando-nos na confiança. Esse movimento, sabemo-lo bem, não tem preço, nem se
compra em parte alguma: só se efetiva através do dom. (...)
Hoje, porém, dei comigo a pensar também na importância do que
não nos foi dado. E a provocação chegou-me por uma amiga que confidenciou: «Gosto
de agradecer a Deus tudo o que Ele me dá, e é sempre tanto que nem tenho
palavras para descrever. Sinto, contudo, que lhe tenho de agradecer igualmente
o que Ele não me dá, as coisas que seriam boas e que eu não tive, o que até
pedi e desejei muito, mas não encontrei. O facto de não me ter sido dado
obrigou-me a descobrir forças que não sabia que tinha e, de certa maneira,
permitiu-me ser eu».
Isto é tão verdadeiro. Mas exige uma transformação radical da
nossa atitude interior. Tornar-se adulto por dentro não é propriamente um parto
imediato ou indolor. No entanto, enquanto não agradecermos a Deus, à vida ou
aos outros o que não nos deram, parece que a nossa prece permanece incompleta.
Podemos facilmente continuar pela vida dentro a nutrir o ressentimento pelo que
não nos foi dado, a compararmo-nos e a considerarmo-nos injustiçados, a
prantear a dureza daquilo que em cada estação não corresponde ao que
idealizamos.
Ou podemos olhar o que não nos foi dado como a oportunidade,
ainda que misteriosa, ainda que ao inverso, para entabular um caminho de
aprofundamento... e de ressurreição. Foi assim que numa das horas mais sombrias
do século XX; desde o interior de um campo de concentração, a escritora Etty
Hillesum conseguiu, por exemplo, protagonizar uma das mais admiráveis aventuras
espirituais da contemporaneidade. No seu diário deixou escrito:
«A grandeza do ser humano, a sua verdadeira riqueza, não está
naquilo que se vê, mas naquilo que traz no coração. A grandeza do homem não lhe
advém do lugar que ocupa na sociedade, nem no papel que nela desempenha, nem do
seu êxito social. Tudo isso pode ser-lhe tirado de um dia para o outro. Tudo
isso pode desaparecer num nada de tempo. A grandeza do homem está naquilo que
lhe resta precisamente quando tudo o que lhe dava algum brilho exterior, se
apaga. E o que lhe resta? Os seus recursos interiores e nada mais»".
(José
Tolentino Mendonça, 18.4.2014)
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