A voz do Batista no
deserto sempre despertou consciências adormecidas, sempre desassossegou corações
que não se queriam acomodar, e criou sempre sintonia entre o que é
verdadeiramente humano e, por isso, profundamente divino.
[João Baptista, Caravaggio - Galleria nazionale d'arte antica, Roma +/- 1604
]
Para entrar no deserto é
preciso ‘desnudar-se’, e esse parece ser o primeiro desafio que Caravaggio
coloca a quem contempla esta pintura de João Batista. Desnudar-se aqui significa colocar de lado as muitas máscaras com
que às vezes vivemos e atrás das quais nos escondemos.
João é esta voz quotidiana
que não se cala e que apela a uma mudança profunda, radical (= a partir da raiz)
da vida, do coração, da inteligência. Os ‘modelos’ nas obras de Caravaggio não eram uma espécie de ‘eleitos fora da sociedade e da vida’ que acontecia
na diversidade de problemáticas e ofícios. Caravaggio sempre escolheu homens e
mulheres que viviam o quotidiano. Homens e mulheres que traziam inscrita na sua
história esta ‘dramaticidade feliz’ de quem vive por dentro, e no tempo, no
concreto, aquilo que são os desafios, a construção, a luta, a exigência…talvez
por isso o segundo grande desafio que nos faz este João é o de nos perguntarmos
com que empenho, com que ‘garra’ estamos a acolher, a viver e a partilhar o
nosso quotidiano. A fé não faz de nós ‘extraterrestres’, muito pelo contrário,
coloca-nos no coração da história e do mundo para aí, com a força da esperança
e a ‘criatividade do Amor’, sermos ‘motor de transformação (= conversão),
fomentadores de sonho e de futuro, companheiros de viagem.
Contemplando mais atentamente este João, vemo-lo
também sem os seus atributos mais comuns: vestido das peles de camelo e a cruz
que habitualmente traz na mão. Caravaggio envolve este homem desnudado num manto vermelho, em contraste profundo
com a escuridão (= João não é a LUZ mas encaminha para ela), coloca-lhe nas
mãos uma cana (= o ‘poder’ deste
homem é o mesmo que veremos mais tarde no “Rei condenado e Crucificado”: o AMOR),
por detrás o tronco de um cipreste (=
sinal da sua condição mortal mas sempre apontando para o Alto, convidando a
deixar-se abraçar e envolver pela ETERNIDADE). Para nós, se quisermos
interpretar isto como um terceiro desafio, estes ‘sinais’ são indicações
preciosas para o nosso caminho de Advento: ‘Revestir-se de luz’, para vencer a
escuridão que pode haver em nós; Colocar de lado todas as tentações de poder,
que apenas nos blindam e não nos deixam ser próximos; Viver o tempo e a
história como um capítulo concreto da vida, que aqui começa, mas que vai para
além do horizonte, atravessa as coordenadas do tempo e se faz uma vida (e)terna.
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