domingo, fevereiro 17, 2013

Deixar a errância para entrar em Casa…



Pode um “coração inquieto” desenhar novos mapas no quotidiano? E com que ‘seguranças’ se faz um projeto?...Entramos na quaresma. 40 dias para aprenderes a olhar para além do deserto…Caminharás com os pés descalços…ao teu ritmo. Um convite a deixar a errância para entrar em Casa…



Errância

Dentro de nós há muitos trilhos para percorrer. O nosso “mapa interior” fala-nos de quotidiano feito de muitas histórias e encontros. Fala-nos de momentos e pessoas, de acontecimentos que nos marcaram mais profundamente ou de outros que simplesmente o tempo levou…Mas a vida que somos, e a história que vamos escrevendo, traz também consigo muito de errância, de trilhos percorridos com banalidade, de momentos em que cedemos o passo à amargura de desfiar os dias sem luz e sem cor…e quando parece que já não há história para acontecer e vida para viver, enrola-se o “mapa da vida” cedendo uma vez mais o passo, como que definitivamente, a um conformismo que agrilhoa pés e mãos, faz embotar a cabeça e o coração e olha o quotidiano como o tempo da perdição



Mas se muita vida é feita de errância, mesmo nos trilhos e caminhos mais ignotos, há sempre uma porta (a da Fé) que abre horizontes novos, faz despertar o coração e ensina a reescrever a vida e a história (pessoal) com um rumo que, afinal, faz sentido. É desta errância de quem busca rumo e se deixa abraçar pela novidade que nos fala a ‘confissão de Fé’ com que hoje nos brinda o Livro do Deuteronómio:



Meu pai era um arameu errante, que desceu ao Egipto com poucas pessoas, e aí viveu como estrangeiro” (Deut. 26, 4-10)



Sem terra, sem pátria, sem identidade, sem história. Aparentemente uma errância que conduz ao vazio. E no entanto Deus faz despontar o novo! Da escravidão do Egipto saem já em longa ‘procissão’ os que hão-de sentar-se como filhos e irmãos na mesa do banquete da Nova Aliança. Do anonimato do estrangeiro nasce a nova identidade, não mais de servo mas de amigo, concidadão dos santos. E aos apátridas Ele, o criador do Universo, faz agora, e para sempre, herdeiros do Reino novo e eterno que mais ninguém lhes pode roubar…Toda a errância se faz sem ver claro, é passo no desconhecido, mas com Deus nenhum caminho leva ao incerto. E isto não podemos esquecê-lo!



Memória

A errância encontra sentido e rumo quando o coração se deixa habitar pela memória agradecida de quem aprendeu a ver no tempo o Eterno a tecer com ‘ouro fino’ uma existência que é dom e que é chamada ao gratuito de um amor que só sabe servir e acolher, sem julgar e sem temer. E se, como no-lo recorda S. Paulo, “com o coração se acredita” (Romanos 10, 8-13) então um ‘coração sem amnésia’, e grato, faz acontecer o milagre da fé. De uma fé que nasce do Encontro, que é gerada pela Palavra em cada verbo, adjectivo ou substantivo pronunciados na ‘narração do quotidiano’ e que se renova na partilha fraterna à volta da mesa dos irmãos quando na fracção do Pão se gera, como naquele entardecer no Cenáculo, o milagre da Vida em abundância. 


A memória, agraciada e agradecida, é um convite a não “remoer a fragilidade passada” mas a deixar que ela seja ternamente envolvida, como uma mãe que afaga um seu filho, com o perdão que converte e salva. E quantos abraços destes, com coração e perdão, nós precisamos de receber…e de dar!



Projeto

Entrámos na quaresma! Não se trata de uma ‘rotina masoquista’ para “cristãos frágeis que ainda não sabem comportar-se bem”. Atravessar a porta (da Fé) em tempo de quaresma significa predispor o coração e a inteligência a caminhar, não na errância mas na confiança, tal como o Mestre que “durante quarenta dias, esteve no deserto, conduzido pelo Espírito” (Lucas 4, 1-13).

Entrar nos desertos que nos habitam ou que gerámos, em nós e nos outros, dinamizados pela confiança significa essencialmente recusar-se a viver num conformismo de quem repete rotinas sem celebrar a vida, de quem se gasta na preguiça de não querer crescer, de quem se senta a ver a vida passar…provavelmente seria mais cómodo, mas a vida assim não teria sabor!



É a confiança que gera em nós a capacidade de construir, de abrir com serenidade e realismo as portas do futuro, sem nos refugiarmos no passado ou sem vivermos amarguradamente o presente. Da confiança nasce a responsabilidade, que é um outro modo de dizer Fidelidade…diária…progressiva…humilde…ativa…alegre! Diante de todas as ‘tentações’ (dentro ou fora de nós) não somos simplesmente os que resistem, nem vivemos a vanglória de nunca cair…Somos aqueles que com coração de filhos aprenderam a não desistir de  invocar: “Pai, não nos deixes cair em tentação…livra-nos do mal!”. E isto sim, é um projeto! Eu vou vivê-lo, e tu?

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