É (sempre) o primeiro passo que marca o ritmo do
caminho! Quem vive paralisado, cheio de medos, mais preocupado em temer do que
em ousar, acaba sempre por perder o sabor
da vida. Sim, a vida tem sabor, sabe a ‘eterno’ de cada vez que decides não
te acomodar, de cada vez que arriscas, mesmo sem saber se vai dar certo, de
cada vez que te entusiasmas em desenhar e construir o futuro com os traços da
esperança, quando o mais fácil seria, afinal, ‘remoer’ o lamento de um passado
que já não podes mudar.
Vem isto a propósito da ‘porta’ que se abre diante de
ti por estes dias: a quaresma. Não é só um tempo no calendário litúrgico, nem
simplesmente um tempo em que ‘às sextas-feiras se come peixe’, nem se resume simplesmente
ao tempo em que não se pode cantar o ‘Aleluia’.
A quaresma é uma viagem, ou melhor, é uma peregrinação, sem pressa, sem medo,
com rumo e com ritmo. É o ‘tempo favorável’ para rever a vida e converter o
coração, um tempo ‘grávido’ de amor, abraçado pela esperança, dinamizado por
uma Paixão: a de Cristo. Por nós, por amor, para sempre!
Se te disser que o
‘motor’ da quaresma é a Alegria, não vais acreditar. Mas é verdade! Há
quaresma porque houve Páscoa, ressurreição, vida nova e (e)terna. E para viver
bem a quaresma não é preciso ‘acampar’ em sexta-feira santa. Dizem os árabes,
num dos seus muitos provérbios, que “louco é o viajante que constrói uma casa
no caminho”. Ora nós não somos meros viajantes, somos peregrinos. Com os pés
descalços diante do mistério, partimos do futuro, da porta do sepulcro e do jardim que transformou as lágrimas de
Madalena num cântico jubiloso de Esperança para a humanidade. Trazemos no
coração o perfume da ‘memória’ de toda uma história tecida de encontros, de
milagres, de palavras do Mestre que mudaram tantas vidas, tantos corações…
Para partires, também tu, nesta viagem há um ‘mapa’
que é preciso ler: a vida, a tua vida
quotidiana. Há uma ‘bússola’ para te orientar o caminho: o Evangelho. Há um ‘caminho sagrado’ (=
via sacra) que é preciso percorrer: a
Paixão de Deus pela humanidade, e que pode resumir-se assim: Jo 3, 16. Há
por fim, um ritmo que é preciso dar a cada passo, e que se pode dizer deste
jeito: «não te contentes com uma ideia ‘pequena’ da
vida» (Papa Francisco).
A Quaresma é o tempo do “coração a caminho”. É convite
a revisitar no tempo a história concreta tecida nos encontros quotidianos, nos
laços construídos ou quebrados, nas mãos estendidas e abertas para acolher ou
nos braços cruzados da acomodação de quem não quis fazer acontecer a “sinfonia”
do encontro fraterno, do amor gratuito, da vida partilhada e celebrada como
dom. É tempo para reconstruir com a determinação da ternura e a força
libertadora do perdão a “identidade nova” do peregrino que se descobre como
“discípulo-apóstolo” em cada recomeço…é por isso que a Quaresma deixa de ser uma
rotina quando o nosso coração vive
habitado pela Páscoa!
Partimos com a cinza pois é (sempre) possível recomeçar! Somos assinalados com a cinza pois é ela que,
na noite gélida do inverno, mantêm acesas e quentes as brasas do lume que se
quer novo para dar luz e fogo à humanidade. E, quando um ‘fogo novo’ desperta e
se torna luz e calor para todos, então é no aconchego do lar, da comunidade,
que se redescobre a família, que se cria espaço para os amigos, que o Mistério
habita cada instante e que a vida, perfumada e agradecida, se torna epifania de
Deus, Ressurreição.
Recorda-te, no entanto, que se
é a cruz te assinala a fronte na hora da partida, será o Amor que se ajoelhará diante de ti para te lavar os pés na hora
da chegada (Jo 13). É que a quaresma é esta viagem (interior) da cabeça aos pés (D. Tonino Bello). Tem
a sua ‘estação central’ no coração. Num coração que vê o essencial, que vive do
essencial, que celebra o essencial.
O Papa Francisco recorda-nos, e acorda-nos, quando nos
desafia a ‘ampliar
o coração’, dado que «o amor torna semelhante, cria igualdade, abate os muros e
as distâncias. Foi o que Deus fez connosco».
Deixo-te 3 desafios, a partir do caminho que a
Igreja nos propõe e ao jeito de (re)começo e de provocação, que talvez te
possam ajudar nesta quaresma a fazer esta volta ao (teu) mundo nestes 40 dias e
com um coração peregrino:
1. Jejuar não engorda, converte. Procura ao longo da quaresma evitar palavras de crítica, de derrota, de
agressividade. Procura com os teus olhos contemplar melhor o que te rodeia,
procura no rosto de cada pessoa os traços do eterno…
2. Rezar não muda a realidade, compromete-te com ela! É que a oração não é
magia. Um ‘coração peregrino’ é sempre um coração que reza, pois a oração é
sintonizar com Deus, é escuta atenta e disponível da voz de Deus. É ela que te
permite discernir (= ler por dentro) a realidade, é por isso que não há nada de
mais responsável do que rezar. Um coração que reza nunca é egoísta…estás a ver
as consequências, não estás?!
3. Partilhar não é (só) dar moedas, é ‘abraçar em Cristo toda a pessoa’. Num tempo habitado por tanta
indiferença, por tantos dramas, é urgente globalizar os gestos de fraternidade.
Um coração que dá, é um coração alegre! É a palavra de Deus que nos garante que
‘há mais alegria em dar do que em receber’ (Actos 20, 25). Há 50 anos atrás, a
Igreja reunia-se em Concílio e interpelava-nos assim: «As alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos
pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma
verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração» (Gaudium et Spes 1). Ora, só vence
a indiferença quem não tem medo de fazer a diferença. Será que é nesta quaresma que vais ter essa coragem?
Quando o Mestre se sentar contigo,
na Páscoa, à mesa que te faz irmão, não precisarás de formalidade, muito menos
de medo…bastar-te-á a certeza de teres caminhado na Sua graça, cantando em cada
passo uma existência que venceu a indiferença. E porque a quaresma é caminho feito com um coração peregrino, então «vai caminhando
desamarrado, dos nós e laços que o mundo faz, vai abraçando desenleado, de
outros abraços que a vida dá. Não percas tempo…!» (M. Veiga).
Boa Viagem. Boa Quaresma!
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