Para contemplar a vida não
basta abrir os olhos, é preciso ‘destrancar’ o coração. Consegues ainda
‘degustar’ o sabor das caricias da tua avó quanto te sentavas no seu colo? E
ainda te lembras do ‘perfume’ deixado em ti pelo sorriso amável daquele velhinho
a quem deste lugar no autocarro? Ah, já para não falar do sorriso penetrante
daquele irmão-mendigo que tiveste a coragem de olhar nos olhos e, ao dares uma
moeda, deste também ternura e tempo. Ainda te lembras? Se tudo isso são para ti
mais do que memórias, então sê bem-vindo à Santidade!
É na rotina dos dias que se
‘pavimenta’ de eternidade o caminho. E há tantos que abriram caminho de
eternidade para nós...não saberemos nunca agradecer o suficiente! Na verdade, o
que celebramos com a solenidade de ‘todos os santos’ não é somente esta coragem
de fazer extraordinário o que é pequeno e quotidiano, celebramos sobretudo a
simplicidade (anónima e universal!) de quem sabe encher de eterno cada
acontecimento, cada encontro, cada pessoa. E porque o Evangelho é sempre
desassossego do coração e da vida, celebrar a santidade é saber-se desafiado
pela misericórdia e ternura de Deus a ser oferta de recomeço, buscador de
dignidade, um grito profético e ensurdecedor de um coração insurreto na
caridade e na justiça. Não é à toa que a liturgia da Igreja nos coloca, no
coração e na vida, as Bem-Aventuranças (Mt 5) nossa identidade fundamental, já
a preparar-nos para o exame (final) do Amor (Mt 25), celebrado como Vida
(e)terna!
Se o Batismo nos faz profetas,
então que a nossa santidade seja ‘incómoda’ e de ‘mãos sujas’. Que ao altar da
vida levemos como incenso o ‘perfume rude’ dos sem teto; o perfume ‘barato e
incómodo’ das mulheres de rua que vendem a sua carne (que é a mesma de Cristo!)
a tantos ‘bem comportadinhos’ que vivem de paz com deus, mas são devoradores
dos irmãos; o ‘perfume agonizante’ de tantos que vivem carregando pesos de um
passado que os devora e não os deixa entrever um futuro de paz; o perfume de
uma igreja “acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas
estradas” (EG 40). Porque “Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e
preocupar a nossa consciência, é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a
força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de
fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida” (EG 49).
Quando nos deixamos tocar e
‘perfumar’ pelos últimos, então o Evangelho torna-se a nossa medida de ser e
agir, o bálsamo quotidiano com que aromatizamos todos, e tudo, que tocamos... e
haverá perfume melhor do que abraçar Deus com as nossas mãos sujas?!
Compartilho contigo a vida das
palavras de um pequeno grande profeta, que mesmo estando no céu, continua a
despertar aqui na terra uma ‘santidade incómoda’:
«Pelos
tempos fora se destacaram santos e santas:
de mãos erguidas, de mãos dadas, de mãos largas,
de mãos rotas, de mãos cheias, de mãos limpas...
de mãos erguidas, de mãos dadas, de mãos largas,
de mãos rotas, de mãos cheias, de mãos limpas...
Nestes dias, e como 'sinal dos
tempos',
exigem-se santos e santas
exigem-se santos e santas
de mãos sujas,
de mãos rudes.
de mãos rudes.
Mãos admiráveis, de cristãos e
cristãs, manchadas
porque remexem escórias sociais,
e de vidas conspurcadas, não raro, tiram pérolas!
porque remexem escórias sociais,
e de vidas conspurcadas, não raro, tiram pérolas!
Adoráveis mãos firmes de
crentes
tratadas como dementes,
a construir sacrários vivos de Cristo.
- Oh paradoxo evangélico
um Cristo demitido do corpo social.
tratadas como dementes,
a construir sacrários vivos de Cristo.
- Oh paradoxo evangélico
um Cristo demitido do corpo social.
Um Cristo ressuscitado porém,
que mãos sujas desenterram de escombros;
vidas aos tombos... remidas também! »
que mãos sujas desenterram de escombros;
vidas aos tombos... remidas também! »
(José Dias da Silva)
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