terça-feira, novembro 03, 2015

UMA SANTIDADE...INCÓMODA!


Para contemplar a vida não basta abrir os olhos, é preciso ‘destrancar’ o coração. Consegues ainda ‘degustar’ o sabor das caricias da tua avó quanto te sentavas no seu colo? E ainda te lembras do ‘perfume’ deixado em ti pelo sorriso amável daquele velhinho a quem deste lugar no autocarro? Ah, já para não falar do sorriso penetrante daquele irmão-mendigo que tiveste a coragem de olhar nos olhos e, ao dares uma moeda, deste também ternura e tempo. Ainda te lembras? Se tudo isso são para ti mais do que memórias, então sê bem-vindo à Santidade!

É na rotina dos dias que se ‘pavimenta’ de eternidade o caminho. E há tantos que abriram caminho de eternidade para nós...não saberemos nunca agradecer o suficiente! Na verdade, o que celebramos com a solenidade de ‘todos os santos’ não é somente esta coragem de fazer extraordinário o que é pequeno e quotidiano, celebramos sobretudo a simplicidade (anónima e universal!) de quem sabe encher de eterno cada acontecimento, cada encontro, cada pessoa. E porque o Evangelho é sempre desassossego do coração e da vida, celebrar a santidade é saber-se desafiado pela misericórdia e ternura de Deus a ser oferta de recomeço, buscador de dignidade, um grito profético e ensurdecedor de um coração insurreto na caridade e na justiça. Não é à toa que a liturgia da Igreja nos coloca, no coração e na vida, as Bem-Aventuranças (Mt 5) nossa identidade fundamental, já a preparar-nos para o exame (final) do Amor (Mt 25), celebrado como Vida (e)terna!

Se o Batismo nos faz profetas, então que a nossa santidade seja ‘incómoda’ e de ‘mãos sujas’. Que ao altar da vida levemos como incenso o ‘perfume rude’ dos sem teto; o perfume ‘barato e incómodo’ das mulheres de rua que vendem a sua carne (que é a mesma de Cristo!) a tantos ‘bem comportadinhos’ que vivem de paz com deus, mas são devoradores dos irmãos; o ‘perfume agonizante’ de tantos que vivem carregando pesos de um passado que os devora e não os deixa entrever um futuro de paz; o perfume de uma igreja “acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas” (EG 40). Porque “Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência, é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida” (EG 49).

Quando nos deixamos tocar e ‘perfumar’ pelos últimos, então o Evangelho torna-se a nossa medida de ser e agir, o bálsamo quotidiano com que aromatizamos todos, e tudo, que tocamos... e haverá perfume melhor do que abraçar  Deus com as nossas mãos sujas?!

Compartilho contigo a vida das palavras de um pequeno grande profeta, que mesmo estando no céu, continua a despertar aqui na terra uma ‘santidade incómoda’:

«Pelos tempos fora se destacaram santos e santas:
de mãos erguidas, de mãos dadas, de mãos largas,
de mãos rotas, de mãos cheias, de mãos limpas...
Nestes dias, e como 'sinal dos tempos',
exigem-se santos e santas
de mãos sujas,
de mãos rudes.
Mãos admiráveis, de cristãos e cristãs, manchadas
porque remexem escórias sociais,
e de vidas conspurcadas, não raro, tiram pérolas!
Adoráveis mãos firmes de crentes
tratadas como dementes,
a construir sacrários vivos de Cristo.
- Oh paradoxo evangélico
um Cristo demitido do corpo social.
Um Cristo ressuscitado porém,
que mãos sujas desenterram de escombros;
vidas aos tombos... remidas também! »
(José Dias da Silva)

 

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