quinta-feira, dezembro 31, 2020

(RE)COMEÇAR...

 

O futuro está diante de nós como promessa e como dom. Sempre fui contemplativo de gente que não teme abrir portas! Encher de ousadia e de espanto o quotidiano é um milagre que Deus sonhou para todos nós. 

Agora que um novo ano se aproxima, é habitual fazer balanços e propósitos. Reina ainda na maioria de nós a ideia de que a vida é feita apenas de ciclos (fechados!), o que faz com que em boa parte das ocasiões vivamos apenas centrados no fragmento, incapazes de olhar o mosaico, a totalidade.

Gosto de olhar a vida como um continuum, isto é, uma sequência que não dispensa a memória e que não se fecha ao futuro. É certo que ao longo deste ano vivemos vários (re)começos. Por entre sobressaltos, medos e impotências, foram crescendo também a esperança, a solidariedade e a lucidez de quem sente e sabe que tudo isto que estamos ainda vivendo é ‘novo’, mas não é ‘normal’. Aliás, a famosa expressão ‘novo normal’ tornou-se, a meu ver, uma aberração existencial. Ela é incapaz de expressar o essencial daquilo que é verdadeiramente humano: a ternura, o afeto. Mostra-nos a vida mais como uma fatalidade do que como uma possibilidade! Se é certo que vivemos quotidianamente uma certa dramaticidade associada ao fato de existirmos, não é menos verdade que no quotidiano há também a promessa e o dom de uma “primavera existencial”, isto é, a possibilidade continua de nos (re)descobrirmos humanos, mais humanos, simplesmente humanos! 

O tempo é sempre dom. Habituados que estamos à cadência voraz de nossos relógios, vamos assumindo ciclos, novos ciclos, apenas como a soma de dias, meses ou anos. É por isso que os nossos ‘propósitos’ de ano novo (quase sempre!) falham, uma vez que nos impomos ‘maratonas existenciais’ que nos farão correr muito, mas saborear pouco o instante, o milagre que perpassa cada respirar e cada encontro. Edgar Morin, um dos pensadores mais lúcidos e provocadores do nosso tempo, em sua mais recente obra “É hora de mudarmos de via”, instiga-nos a um olhar mais profundo e demorado sobre o quotidiano, os ritmos, o sabor e o significado de todas as coisas ao questionar-nos: “O isolamento foi uma reclusão, mas também uma libertação interior em relação ao tempo cronometrado(…) Terminando o isolamento vamos retomar a corrida infernal?”.

Habituados que estamos à superficialidade devoradora do tempo, a densidade de uma existência tecida pelas exigências da ternura parece-nos quase uma utopia. Em tempos de inteligência artificial, internet das coisas e digitalização da memória, talvez seja oportuno recordarmos o essencial: “Há dias, falando com alguns cientistas, comentava-se a inteligência artificial e os robôs… há robôs programados para tudo e para todos, e isto vai progredindo. E eu disse-lhes: “Mas o que nunca serão capazes de fazer os robôs?” Eles pensaram, deram sugestões, mas no final concordaram num ponto: a ternura. Isto os robôs não serão capazes de fazer. E é isto que Deus nos traz hoje: uma forma maravilhosa pela qual Deus quis vir ao mundo, o que reaviva a ternura em nós, a ternura humana que está próxima daquela de Deus. E hoje temos tanta necessidade de ternura, tanta necessidade de carícias humanas, face a tanta miséria! Se a pandemia nos obrigou a estar mais distantes, Jesus, no presépio, mostra-nos o caminho da ternura para estarmos próximos, para sermos humanos. Sigamos este caminho” (Papa Francisco, Audiência Geral de 23 de dezembro de 2020).

Miguel Torga, insigne poeta e intenso buscador do humano, cantou assim o (re)começo: «Recomeça se puderes, sem angústia e sem pressa. E os passos que deres, nesse caminho duro do futuro dá-os em liberdade. Enquanto não alcances não descanses. De nenhum fruto queiras só metade. […] Só é tua a loucura onde, com lucidez, te reconheças…».

Na hora de (re)começar, acredito que o essencial não será fazer, mais uma vez, os tão famosos ‘propósitos’, mas sim duas perguntas essenciais: Como vou saborear, agradecer e compartilhar o tempo em 2021? Com quanta ternura vou perpassar cada gesto, palavra ou encontro?

 (Re)começa! Feliz 2021.

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